País gastou R$ 5 bilhões com remédios de alto custo em 8 anos;
Recursos que vão definir regra geral sobre acesso aos medicamentos estão parados desde 2016, sem data para conclusão. Ministério da Saúde e CNJ criaram banco para ‘embasar’ análises jurídicas; conselheiro do CFM critica burocracia.
O cenário é recorrente: no consultório, o paciente descobre que uma única dose do remédio que lhe traria a cura ou alívio custa milhares ou até milhões de reais. Mesmo entrando na Justiça, há casos em que o processo se arrasta por anos e o paciente morre antes de receber o medicamento. Muitas vezes, os trâmites burocráticos também dificultam ou atrasam o acesso ao remédio.
Ainda assim, nos últimos oito anos, o Ministério da Saúde contabilizou gastos de R$ 5 bilhões para atender a determinações judiciais desse tipo. A despesa cresceu 912% entre 2010 e 2017 e, só no ano passado, o governo pagou R$ 1 bilhão para adquirir os dez medicamentos de alto custo mais demandados.
Casos no STF
O tema é analisado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em centenas de ações, mas dois recursos ganharam status especial porque o plenário admitiu a repercussão geral dos casos. Isso significa que a tramitação dos outros processos está suspensa, e a decisão tomada nesses dois casos vai servir de parâmetro para o restante. Os ministos teriam que dizer se o governo deve ou não pagar remédios de alto custo, sejam eles com ou sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Uma dessas ações foi protocolada no Rio Grande do Norte, em 2007, por uma paciente com hipertensão pulmonar. Neste caso, a mulher precisa de um medicamento de alto custo que já foi aprovado pela Anvisa, mas não estava na Política Nacional de Medicamentos – ou seja, não constava nos estoques dos SUS.
O outro recurso foi apresentado em 2011, em Minas Gerais, e tramita junto ao primeiro. Nele, a paciente pediu que a Justiça obrigue o poder público a custear um medicamento que não tem registro na Anvisa, baseado no reconhecimento internacional da eficácia do remédio.
A paciente mineira Alcirene de Oliveira se juntou à estatística dos que morrem no aguardo da sentença definitiva. Foram sete anos de espera. A morte, ocorrida em dezembro, foi informada ao STF em 18 de junho. Com isso, caberá ao ministro relator, Marco Aurélio Mello, decidir se arquiva ou dá continuidade ao processo – mesmo que seja apenas para fechar um entendimento do Supremo sobre o tema.
O julgamento dos recursos começou em setembro de 2016, mas foi interrompido a pedido do então ministro Teori Zavascki. Com a morte do magistrado, a análise passou às mãos do ministro Alexandre de Moraes, que ainda não devolveu o tema à pauta. Não há data para que o caso seja retomado em plenário.
O papel do médico
O Conselho Federal de Medicina (CFM) ainda não tem posição fechada sobre o tema. Em entrevista ao G1, o psiquiatra e conselheiro federal por Goiás, Salomão Rodrigues Filho, explicou a “parte técnica” do dilema analisado pelo STF.
Segundo ele, a prescrição de um remédio de alto custo não é feita de modo leviano, e sim, resultado de uma série de considerações. Já no consultório, o paciente é orientado sobre as dificuldades que enfrentará para obter o medicamento.
“O médico já conversa com o paciente ou familiar, dependendo das condições clínicas. ‘Olha, o valor de obtenção é tal, e você pode obter por via judicial.’ Normalmente, o médico já envia o caso para o Ministério Público”, afirma.
“Nem sempre, é caso de vida ou morte. Você tem medicamentos de alto custo para a cura da hepatite C, por exemplo. Sem eles, o paciente vive anos, mas com uma qualidade de vida extremamente ruim, improdutiva.”
Salomão afirma que as entidades médicas têm firmado parcerias com tribunais e MPs, em nível regional, para ajudar na avaliação de cada demanda. Para ele, os esforços ainda não estão à altura do desafio.
“Se o Executivo adquirisse esses medicamentos diretamente do fabricante, com um tempo maior, poderia até pagar menos. A gente precisa superar as fases burocráticas, para que esses insumos importantes não sejam barrados.”
Além disso, o psiquiatra discorda que o paciente seja obrigado a “comprovar pobreza” para acessar o medicamento de forma gratuita. “Se o paciente precisa, o governo tem de providenciar. Está na Constituição, é dever do Estado”, defende.
Para resolver o problema a médio e longo prazo, o conselheiro do CFM defende uma ação do governo em duas linhas: de um lado, juntas médicas para “aconselhar” os magistrados nos processos, e de outro, investimento em acordos internacionais para importar tecnologia, comprar lotes maiores e, com isso, diminuir custos.
“O Executivo pode fazer negociações muito mais favoráveis. Se o paciente vai a uma importadora e, depois, pede reembolso, isso é muito mais caro. Há países na África que recebem medicamentos pagando menos, que não cobram impostos nessa transação”, exemplifica.
“Se a demanda é pequena, oito ou dez casos anuais, faz sentido tratar pela Justiça. Se implica em quantidades maiores, dá para o Executivo ser mais proativo.”
As juntas médicas, segundo Salomão Filho, já funcionam de modo exemplar em algumas parte dos país. Nesses locais, médicos passaram a atuar como “peritos” do MP. Além de evitar fraudes ou prescrições desnecessárias, essas juntas podem avaliar se, de fato, a comprovação de eficácia do medicamento está bem justificada.
“É preciso que o governo tenha segurança da qualidade do produto que está adquirindo. Há algum tempo, o país teve problemas porque um medicamento adquirido por menor preço teve sua qualidade questionada”, diz o psiquiatra, em referência aos lotes de Leuginase comprados pelo Ministério da Saúde de um laboratório chinês.
Questionado pelo G1, o psiquiatra disse discordar das sentenças que obrigam o Estado a importar medicamentos não reconhecidos pela Anvisa – outra visão pessoal, que não é consenso no CFM. Segundo ele, seria mais importante agilizar a inclusão das substâncias na lista nacional do que “burlar” o processo.
“Se o paciente quiser, que saia do país e faça seu tratamento. Temos que passar pela Anvisa, eu não vejo por que ela barraria um fármaco estrangeiro com eficácia comprovada. Se países desenvolvidos, se o FDA [órgão regulador dos Estados Unidos] reconhece o produto, não há por que a Anvisa não reconhecer”.
O que o Ministério da Saúde diz
Embora não seja parte direta nos processos – o governo é representado pela Advocacia-Geral da União (AGU) –, o Ministério da Saúde diz estar fazendo sua parte para ampliar a oferta gratuita de medicamentos. Segundo o ministro, de 2010 a 2018, a Relação Nacional de Medicamentos (Rename) cresceu 98%, passando de 555 para 1.098 itens padronizados.
O Orçamento-Geral da União prevê R$ 19,4 bilhões, em 2018, para a compra de medicamentos. O valor é 9,6% maior que os R$ 17,7 bilhões gastos em 2017.
Além da expansão da lista de medicamentos do SUS, o ministério diz ter criado um “núcleo de judicialização” para lidar com as demandas apresentadas à Justiça. Em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a pasta criou um banco virtual de pareceres médicos e notas técnicas, que podem embasar a análise de juízes sobre casos ligados à medicina.
Fonte: G1.com.br