Crise do sono: dormindo cada vez menos, sociedade se expõe a riscos
Quando sentiu que um motorista havia colidido o carro dele na traseira do seu veículo, o psiquiatra Dirceu de Campos Valladares Neto consultou o relógio e estranhou o horário da batida: em geral, os esbarrões que sofria no trânsito aconteciam entre 13h e 15h – “um horário em que quem dorme mal costuma ficar mais sonolento” –, mas os ponteiros, dessa vez, marcavam por volta de 17h. Enquanto resolvia as burocracias referentes ao pequeno acidente, o médico aproveitou para conversar com o outro condutor. “Perguntei se ele vinha dormindo bem, e ele disse que sim, que não tinha dificuldade para dormir. Então, questionei quantas horas de sono ele tinha por noite. E ele me disse que a média era de quatro horas”, relata em tom triunfal, pois a história confirma a tese de Valladares: habituados a dormir cada vez menos, sofremos, em diversas esferas, efeitos danosos em razão de uma perda da qualidade do sono, sobretudo nas grandes cidades.
“A diminuição do tempo de sono é um fenômeno que vem se consolidando e se acentuando em todo o mundo. Com o advento da luz elétrica e de mídias eletrônicas, o homem foi ficando igual a um mosquito, sendo atraído pela luminosidade mesmo quando isso é maléfico. A verdade é que, quando jogamos luz sobre nossos olhos, dormimos menos. Mas seguimos tendo obrigações que exigem de nós continuar acordando cedo”, avalia Valladares, que é especializado em medicina do sono.
Pesquisas confirmam que há uma correlação entre dormir menos e ceder tarde demais à necessidade de descanso: um estudo da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, por exemplo, indicou que os países menos afeitos ao repouso noturno, entre eles o Brasil, são também os que dormem mais tarde. Em média, brasileiros vão para a cama às 23h40 e permanecem nela por sete horas e 36 minutos – só cidadãos do Japão, que dormem sete horas e 30 minutos, e de Singapura, com tempo de sono estimado em sete horas e 24 minutos, têm duração de repouso menor.
A situação é especialmente preocupante porque a má qualidade do sono é fator de risco para doenças cárdio e neurovasculares, como o infarto do miocárdio e o Acidente Vascular Cerebral (AVC), e para doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer. Detalhe: a pandemia do novo coronavírus pode ter agravado quadros e distúrbios que causam prejuízo ao descanso noturno. Uma pesquisa recente que investigou o impacto da Covid-19 no estilo de vida das populações indicou que, no Brasil, 40% das pessoas têm dormido pior. Consonante ao resultado desse levantamento, a otorrinolaringologista Melânia Marques, com área de atuação em medicina do sono, vem observando que queixas de insônia, sono agitado e cansaço durante o dia têm sido mais frequentes desde de março.
“Além de as pessoas estarem mais preocupadas e ansiosas, as mudanças na rotina e o distanciamento social podem ter efeito nos sincronizadores do ritmo circadiano (período de 24 horas sobre o qual se baseia o ciclo biológico de quase todos os seres vivos) fundamentais para a saúde do sono”, diz Melânia.
Neste sentido, Valladares faz um alerta: “Quanto mais emparelhado ao ritmo circadiano, mais economia de energia o nosso corpo é capaz de fazer. Assim, quanto mais naturalidade para dormir e despertar, quando esse relógio interno está afinado com o ambiente em que se está inserido, melhor será a homeostase (a condição de relativa estabilidade da qual o organismo necessita para realizar suas funções adequadamente para o equilíbrio do corpo)”. Portanto, a boa qualidade do sono é benéfica para a saúde e o bem-estar e influi até mesmo na maior capacidade criativa. Há indícios de que dormir possa ser melhor até para a economia: “No Japão, estima-se que o repouso adequado poderia ampliar o produto interno bruto (PIB) em 2%”, examina o estudioso.
Falta de sono afeta o comportamento e expõe pessoas a situações de perigo
Sabe-se hoje que a falta de sono pode provocar também alterações comportamentais. “Quem dorme mal, fica agressivo e impulsivo, expondo-se a perigos desnecessários”, avalia Dirceu Valladares. Como citado no parágrafo que abre esta reportagem, ele também associa a tendência de supressão do sono à recorrência dos acidentes de trânsito. “Se não garantimos tempo adequado de repouso, nosso corpo vai cobrar de nós. É como ir ao banco e pegar um empréstimo: teremos que lidar com os juros. Logo, se não descansamos o suficiente à noite, o organismo sentirá esse cansaço”, argumenta. De fato, de acordo com pesquisa da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), sono e cansaço motivam até 60% dos acidentes de trânsito.
Os juros que esse “banco do sono” cobram repercutem ainda em uma perda progressiva da capacidade de defesa do sistema imunológico. O psiquiatra cita evidências científicas de que apenas um quinto das pessoas infectadas com vírus gripais que têm tempo de repouso adequado chega a adoecer. No caso daquelas que dormem cerca de quatro horas por dia, até 50% chegam a gripar. Valladares sublinha que o sono é tão importante para a sobrevivência quanto a alimentação. “Experimentos com roedores na década de 90 observaram que, dando comida e água, mas privando do sono, esses animais viviam até 21 dias. Quando dormiam, mas não eram alimentados, em 20 dias morriam”, cita.
São tantos os prejuízos que alguns ainda seguem sendo investigados. Um estudo realizado na Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, por exemplo, indicou que pessoas que sofrem de algum distúrbio respiratório grave que cause prejuízo ao sono podem ter até cinco vezes mais chances de morrer por câncer, informa Valladares.
Insônia e problemas respiratórios são queixas mais comuns
A otorrinolaringologista Melânia Marques situa que a insônia está entre os distúrbios que mais aterrorizam as noites dos moradores de grandes cidades. Trata-se de um transtorno que “se caracteriza por queixas de dificuldade de iniciar ou manter o sono e repercussões nas atividades diurnas”, explica. Outro grave problema é a apneia obstrutiva do sono, que “é um problema muito prevalente na população, e seu sintoma mais comum é o ronco de alta intensidade e frequência durante o sono”, informa a especialista. Acredita-se, aliás, que dom Pedro II, último monarca da história imperial brasileira, sofria deste distúrbio do sono – e, por isso, apresentava sonolência excessiva durante o dia, dormindo em diversas ocasiões inapropriadas.
Dirceu Valladares assegura que a preparação para o ir para a cama deve ser, via de regra, cercada de cuidados que visem o relaxamento. “Quando a gente vai dormir, não deve esquentar a cabeça. Essa não vai ser a hora de entrar em uma discussão, de se estressar antecipadamente pela rotina do dia seguinte”, diz.
O psiquiatra compara o sono a um animal fugídio: “Se ficamos tensos nos cobrando até mesmo a capacidade de dormir, então não conseguimos relaxar e o sono não vem, pois ele é como aquele animal que foge ao menor movimento”. Uma dica, complementa, é não perseguir o sono quando ele escapa, mas buscar deter a atenção, por exemplo, à própria respiração, buscando relaxar.
“Ao sentir que a qualidade do seu sono está sendo prejudicada por algum distúrbio, a pessoa deve procurar um especialista para avaliação e resolução adequadas de suas queixas”, aconselha Melânia, que lista dicas de bons hábitos de higiene do sono que podem emprestar mais qualidade ao repouso diário:
- Manter horários regulares de dormir e acordar todos os dias;
- Fazer atividades relaxantes próximo ao horário de dormir (banho quente, ler, ouvir músicas relaxantes) e ir para a cama quando já estiver com sono;
- Ter um ambiente de sono tranquilo (cuidado com luminosidade e ruídos excessivos, ter colchão e travesseiros confortáveis);
- Evitar trabalhar, comer e assistir à TV na cama;
- Evitar eletrônicos (como smartphones) antes do horário de dormir;
- Evitar álcool, cafeína, refeições pesadas e muitos líquidos antes de deitar;
- Praticar atividades físicas com frequência;
- Não usar medicamentos para dormir por conta própria.
Fonte: O Tempo