Crises de enxaqueca se tornaram mais comuns e constantes durante a pandemia
Uma dor pulsante, que desconcerta e apura a sensibilidade à luz, que dificulta a capacidade de organização dos pensamentos e gera prejuízos à rotina de trabalho e à capacidade de socialização. É assim que a técnica em farmácia Andressa Perez, 36, descreve as crises de enxaqueca que a acompanham desde os 15 anos. “Em dias muito intensos, sinto náuseas, e qualquer ruído parece um estrondo”, detalha, confirmando que o quadro se agravou com a chegada da pandemia da Covid-19. “A gente ficou mais tenso e mais preocupado (nesse período). São vários os cuidados que a gente antes não precisava tomar, mas que agora fazem parte da rotina. Com isso, o estresse se tornou maior. A tensão ficou mais concentrada, e a enxaqueca, mais severa”, observa.
A exemplo do relato de Andressa, há evidências de que este momento turbulento do mundo tenha repercutido em um aumento e agravamento tanto dos casos de dores de cabeça comuns, as cefaleias tensionais, quanto dos episódios de enxaqueca, as cefaleias primárias. No Brasil, uma pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) e encomendada pela biofarmacêutica Takeda, que fabrica os medicamentos Neosaldina e Dramin, revelou que, por conta das preocupações associadas à emergência sanitária, três em cada dez brasileiros (31%) passaram a sofrer com dores de cabeça. Outro estudo, do instituto Ipsos, identificou que 14% dos entrevistados disseram estar sofrendo cronicamente com esse problema como resultado da pandemia de coronavírus, sendo 18% mulheres e 9% homens. Considerando todas as nações participantes do levantamento, o índice coloca o país em primeiro lugar, junto com o México, também com 14%, no ranking dos mais impactados por crises de cefaleia primária neste período.
Como Andressa sabe, a enxaqueca é apontada como uma das dez doenças mais incapacitantes do mundo, que prejudica a capacidade de concentração e de raciocínio e mina o poder criativo, sendo um impeditivo para a socialização e inviabilizando a prática de esportes. Há três anos a técnica em farmácia trata o distúrbio com aplicações de toxina botulínica, o botox. O uso da substância é uma novidade no rol de possibilidades de tratamento para esse problema.
Apesar de o botox ser mais conhecido pela utilização em procedimentos estéticos, um estudo realizado pela Faculdade de Medicina de Wisconsin, nos Estados Unidos, indicou que o produto pode ser utilizado no combate a esse problema de saúde. “As substâncias presentes na toxina botulínica promovem o relaxamento muscular, diminuindo a manifestação dos sinais de dor causados pela enxaqueca. Mas, antes de optar pelo tratamento com botox, é preciso um diagnóstico conjunto entre o neurologista e o dentista para saber se a causa da dor é mesmo a enxaqueca tensional”, indica o cirurgião-dentista Gustavo Féres, que é especializado nesse tipo de procedimento.
O profissional explica que as aplicações devem ocorrer em um período nunca inferior a quatro meses. “Se ocorrer com intervalos mais curtos, o próprio corpo age para expulsar a substância, e os efeitos vão passar mais rápido”, expõe, informando que os benefícios costumam durar até seis meses. Andressa ratifica. Neste ano, ela passou pelo procedimento em junho e, agora, retorna ao consultório em dezembro.
Especialistas já previam aumento
O aumento da incidência e o agravamento dos casos em um momento de turbulência já eram esperados por especialistas, pois a enxaqueca, via de regra, é desencadeada por um somatório de fatores. “É raro, nos atendimentos, encontrar uma pessoa que sofra de enxaqueca e que não tenha histórico familiar”, expõe Drusus Perez Marques, presidente da Sociedade Mineira de Neurologia. Ele indica também que as ocorrências são mais comuns em mulheres no período fértil, dado que as flutuações hormonais do ciclo reprodutivo podem levar a crises. Mas há também elementos ambientais, de forma que um ambiente estressor é, muitas vezes, a principal causa para a manifestação da enfermidade. Aspectos comportamentais também podem ser relevantes.
Entre os mais de cem eventos que podem desencadear crises, muitos foram agravados pelo atual momento. “Situações estressoras e má qualidade do sono são fatores preponderantes na maioria dos casos”, aponta Marques. E o raio-x que a pesquisa do instituto Ipsos registrou sobre o atual momento vivido no país indica piora justamente nesses indicadores.
Verificou-se, por exemplo, que quatro em cada dez brasileiros têm sofrido de ansiedade como consequência do surto do novo coronavírus, sendo as mulheres as mais afetadas: 49% delas se declaram ansiosas, contra 33% dos homens. A perda de qualidade do sono também é notável: 26% dos brasileiros têm enfrentado dificuldades para dormir desde março. Novamente, elas aparecem como as mais prejudicadas: são 33%, contra 19%. O brasileiros só tem dormido melhor que os mexicanos, que ocupam o primeiro lugar no ranking. Lá 38% da população tem tido insônia.
Quanto às condições comportamentais, a ingestão de bebidas alcoólicas, em especial o vinho tinto, pode incitar crises. “Algumas pessoas têm reações a alimentos muito específicos. Entre aqueles que mais frequentemente são associados à enxaqueca estão os queijos curados e os embutidos”, explica Marques. E se, como brinca o neurologista, uma noitada regada a vinhos harmonizados com esses petiscos e combinada com poucas horas de sono é receita relativamente comum para a manifestação de uma cefaleia, é uma rotina de atividades físicas prazerosas, de alimentação balanceada e de muita hidratação, que costuma funcionar para a prevenção desse problema.
Diferenças entre dores de cabeças comuns e enxaquecas
Diferentemente das dores de cabeça comuns – as chamadas “cefaleias tensionais”, que ocorrem na maioria das pessoas em algum momento da vida e que podem ser sinais de outras enfermidades, como um aneurisma ou meningite –, as enxaquecas têm características próprias. “Estamos falando de uma cefaleia primária, isto é, a dor é a doença em si, e não sintoma de outro problema de saúde”, observa o neurologista Drusus Perez Marques.
Há outras particularidades: “Trata-se de uma dor crônica do tipo pulsátil, que pode ser acompanhada por náusea, tonteira e que pode piorar quando há esforço físico, contato com ambientes muito luminosos ou barulhentos”. Em alguns casos, há sintomas aparentes, como vermelhidão nos olhos e no rosto e inchaço nas pálpebras.
Tratamento. “Há vários perfis de pacientes com enxaqueca. Alguns vão ter crises esporádicas, então serão orientados a usar um medicamento para conter essa dor quando ela surgir. Outros terão crises mais frequentes. Neste caso, pode ser importante a adoção de novos hábitos a partir da identificação de comportamentos que podem estar desencadeando o distúrbio. Quando as crises são rotineiras, pode ser necessário entrar também com medicamentos farmacológicos preventivos”, informa Drusus Perez Marques, detalhando que o tratamento pode ser multidisciplinar: se há um fundo emocional, o paciente pode ser orientado a buscar ajuda por meio de sessões de psicoterapia, e, se a raiz do problema é, por exemplo, o bruxismo, o tratamento será acompanhado também por um cirurgião-dentista.
A automedicação piora os quadros de cefaleia primária. “Com grande frequência, a enxaqueca se complica por abuso de analgésico. Isso porque o paciente vai se medicar, sem tratar adequadamente a dor, provocando um efeito de retorno: quando o efeito dos comprimidos passar, a dor vai voltar”, alerta.
Fonte: O Tempo