Responsabilidade sobre a contracepção não deve ser exclusivamente da mulher
No fim de outubro, o médico Paulo Hermes decidiu tornar público o relato de um caso que, anos atrás, lhe causou estranhamento. Especializando-se em neurologia, ele prestava assistência ambulatorial quando atendeu a uma paciente que, aos 17 anos, havia sofrido um Acidente Vascular Cerebral (AVC) isquêmico, também conhecido por derrame ou isquemia cerebral. A enfermidade tira a vida de aproximadamente 6 milhões de pessoas por ano em todo o planeta, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mas é uma doença rara entre jovens – estima-se que em aproximadamente 80% das vítimas tenham mais de 50 anos. Ao investigar o quadro atípico, ele chegou a uma possível causa: ocorre que, a cada relação sexual, a menina era induzida pelo namorado a tomar a Pílula do Dia Seguinte (PDS), um contraceptivo de emergência. Em três meses, foram cerca de 70 comprimidos. Hermes se espantou sobretudo com o fato de o parceiro da paciente – que sobreviveu, mas ficou com sequelas – ter fugido ao saber que ela havia sofrido um AVC.
Incomodado, o médico compartilhou a história no Twitter e a repercussão foi estrondosa. “Eu fiz a postagem porque fiquei bem frustrado pela falta de acesso à informação que algumas pessoas estão sujeitas até hoje”, diz. De fato, entre as mais de 60 mil interações, é sensível como outras jovens e adolescentes reagiram demonstrando também desconhecer os riscos do uso abusivo da PDS – como a isquemia cerebral e hemorragias graves. Além disso, em menor escala, alguns rapazes reconheciam como deveriam debater mais sobre a própria responsabilidade em relação à contracepção – e adotar uma postura mais efetiva em relação ao tema.
Para Hermes, é justamente a falta de uma educação sexual de qualidade tanto em casa quanto nas escolas, somada à negligência masculina com relação aos cuidados para evitar uma gravidez não planejada, que explica a ocorrência de casos assim.
Membro do Comitê de Ginecologia Infantopuberal da Associação dos Ginecologistas e Obstetras de Minas Gerais (Sogimig), Fabiene Bernardes Castro Vale acredita que informações falsas disseminadas nas redes sociais que inibem o uso das pílulas anticoncepcionais têm também levado a um aumento da procura da PDS, que deveriam ser usadas apenas em situações muito específicas. “O acesso à informação está mais amplo e pulverizado. Mas, principalmente nos últimos dois anos, percebo que há também muita desinformação circulando nas redes sociais. São diversos mitos e preconceitos que têm desencorajado mulheres a usar as pílulas anticoncepcionais, porque os métodos de contracepção hormonal estão sendo vistos como ruins”, critica.
A médica enumera os principais mitos em relação ao uso de anticoncepcional. De acordo com ela, muitas meninas acreditam que vão necessariamente ter efeitos adversos se optarem por alternativas hormonais. “É muito comum relatarem medo de ficar gorda, de o medicamento levar ao desenvolvimento de estria ou à perda de cabelo. Algumas pensam que não vão conseguir ter bons rendimentos em academia e que não vão conseguir ganhar massa magra. Outras têm receio de ter trombose, excesso de sangramento ou de secreção vaginal, de perder a libido e de não conseguir mais ter filhos”, indica.
Por medo de efeitos assim, essas mulheres estariam optando por métodos menos eficazes – como o coito interrompido, em que o homem retira o pênis da vagina antes da ejaculação e que tem taxa de proteção à gravidez estimada em cerca de 75%. Contudo, ao se sentirem inseguras, acabam recorrendo mais vezes a PDS com mais frequência.
Mas há também vias não hormonais que se mostram eficientes, como o DIU de cobre, que funciona pela danificação dos espermatozoides, evitando o encontro com o óvulo. Segundo a OMS, o modelo tem eficácia de 99% e, em 2017, já era utilizado por 170 milhões de mulheres, superando os 110 milhões que usam a pílula. No Brasil, o DIU é disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Mitos e verdades sobre a Pílula do Dia Seguinte
“A pílula contraceptiva de emergência é indicada para mulheres que tenham tido relação sem estar usando anticoncepcional ou camisinha, se a estratégia não foi utilizada de forma ideal ou, ainda, se ela foi forçada a ter uma relação sexual”, pontua Fabiene Vale.
A profissional assinala a PSD não é um abortivo. “Ela funciona interrompendo o momento da ovulação ou evitando a fertilização de um óvulo já pronto. Então, não há formação de um embrião”, diz, complementando que a OMS e o colégio americano de obstetrícia e ginecologia definem o método como uma forma não arriscada de prevenção da gestação não planejada até 120 horas depois de uma relação desprotegida, sendo que, quanto mais precoce for o consumo, mais efetiva será a ação.
A taxa de eficácia é de 75%, em média, e pode-se recorrer ao modelo até duas vezes no mesmo ciclo reprodutivo, mas, nesse caso, o grau de eficiência fica comprometido. Quando o uso se torna abusivo, os efeitos colaterais podem ser graves, assevera.
Importante sublinhar que pessoas que apresentam doenças metabólicas, como insuficiência hepática e tromboembolismo, devem evitar de tomar a PSD e avaliar, junto com profissionais da ginecologia, os melhores métodos contraceptivos a serem adotados.
MÉTODO CONTRACEPTIVO DEVE SER DISCUTIDO ENTRE PARCEIROS E CONTAR COM AUXÍLIO MÉDICO
Hoje, sabe-se que mesmo os anticoncepcionais, que são considerados mais seguros que as Pílulas do Dia Seguinte (PSD) e têm taxa de eficácia de 97%, em média, podem aumentar riscos de Acidente Vascular Cerebral (AVC) isquêmico e de infartos em duas vezes e de trombose venosa em quatro vezes. Os riscos, no entanto, são considerados extremamente baixos, e os casos em que há o desenvolvimento desses problemas de saúde são raros.
De qualquer maneira, são fatores que reforçam a importância do auxílio de um profissional da medicina para que se determine qual o melhor método contraceptivo a ser adotado. No Brasil, entretanto, pelo menos 5,6 milhões não têm o hábito de ir ao ginecologista obstetra, 4 milhões nunca procuraram atendimento com esse especialista, e outras 16,2 milhões não passam por consulta há mais de um ano, conforme indicou uma pesquisa divulgada em fevereiro de 2019 pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) em parceria com o instituto Datafolha. O estudo “Expectativa da mulher brasileira sobre sua vida sexual e reprodutiva: As relações dos ginecologistas e obstetras com suas pacientes” ainda evidenciou que, sem consultas frequentes, cerca de 20% das mulheres com mais de 16 anos podem ter um problema sem ao menos imaginar e até adotar modelos de contracepção por conta própria.
“O primeiro passo é realizar uma consulta ginecológica a partir do momento em que se iniciam as relações sexuais”, reforça Fabiene Bernardes Castro Vale, membro da Associação dos Ginecologistas e Obstetras de Minas Gerais (Sogimig). Ela lembra que o SUS oferece consultas sobre planejamento familiar, inclusive para homens, nas quais o método contraceptivo adequado vai ser buscado em um esforço conjunto entre médico e paciente. De acordo com a pesquisa da Febrasgo, é a esse serviço que recorreram 58% das mulheres que já foram a um ginecologista, enquanto 20% optam por atendimento particular, e outras 20%, por planos de saúde.
“É na consulta com um profissional que serão pedidos exames específicos e o melhor modelo será indicado, levando-se em consideração diversos fatores, como a rotina, o estilo de vida e o histórico familiar da pessoa atendida”, expõe Fabiene, alertando que, mais do que visitas esporádicas, o acompanhamento periódico é fundamental. “Depois de definir o método, a paciente deve voltar ao consultório em até três meses para verificar ocorrência de efeitos colaterais ou de possíveis benefícios percebidos, como dores de cólicas que podem ser reduzidas”, informa. Então, a depender dos resultados, pode-se optar pela manutenção ou pela adoção de outra forma de ação anticoncepcional. Se o método for mantido, outra visita pode ser marcada em até seis meses e, depois, as consultas podem ser mais espaçadas, sendo realizadas anualmente, por exemplo.
Responsabilidade compartilhada. O primeiro método anticoncepcional injetável masculino já passou por testes clínicos e pode ser lançado em breve. Trata-se de uma vacina com aplicação na região dos testículos, que pode durar até 13 anos, podendo ser reversível, e que tem eficácia de 97% na prevenção à gravidez. A camisinha, que é fornecida gratuitamente pelo SUS, fornece proteção de 98% e ainda é eficiente contra Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs).
Formado pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), o médico Paulo Hermes reforça que a responsabilidade quanto à contracepção seja dividida entre aqueles que participam da relação. “Hoje, ainda associa-se muito a contracepção a um papel exclusivamente feminino. Mas é muito importante que o parceiro também tenha conhecimento sobre o assunto e procure sempre estar informado. Isso contribui muito para a construção de relacionamentos mais saudáveis”, argumenta.
Combinar anticoncepcional e Pílula do Dia Seguinte é prejudicial. Recorrer aos dois métodos simultaneamente, no lugar de trazer mais segurança, pode aumentar o risco de trombose e provocar inchaço e enxaqueca. Os principais efeitos colaterais dessa combinação de remédios são náuseas, vômitos, dor de cabeça, dor nas mamas e vertigens.
Fonte: O Tempo