Emagrecimento não é necessariamente sinônimo de saúde
A rotina, as condições de acesso, os preços e a busca por prazer para além da saciedade: são diversos os fatores que interferem na forma como nos relacionamos com a comida, que precisam ser levados em conta ao se analisar como, ao longo dos últimos séculos, temos passado pelo que especialistas identificam como uma transição nutricional. Trata-se de um fenômeno muito associado à urbanização, industrialização e globalização, que “resultou na chamada ‘dieta ocidental’, caracterizada pelos altos teores de gorduras, principalmente de origem animal, de açúcares e alimentos refinados e baixos teores de carboidratos complexos e fibras”, conforme descrevem os autores de um artigo publicado no I Seminário Alimentação e Cultura na Bahia, promovido pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb).
“A dieta ocidental e o aumento da obesidade estão amplamente associados com a alta prevalência de doenças crônicas não transmissíveis e com a diminuição da qualidade de vida da população”, acrescentam os pesquisadores no texto “Mudanças dos hábitos alimentares provocadas pela industrialização e o impacto sobre a saúde do brasileiro”. De fato, o percentual de brasileiros obesos em idade adulta mais do que dobrou em 17 anos, indo de 12,2% em 2002, quando o índice começou a ser mensurado, para 26,8%, em 2019, conforme levantamento mais recente da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), divulgada no ano passado. O inquérito, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde, também indicou que, no mesmo período, a proporção da população adulta com excesso de peso passou de 43,3% para 61,7%.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) recorre ao Índice de Massa Corporal (IMC), um cálculo que relaciona peso e altura, para balizar a classificação dos indivíduos, de forma que aqueles que estão abaixo de 18,5 kg/m² são categorizados como com déficit de peso, já os que têm o IMC igual ou superior a 25 kg/m² são considerados com excesso de peso e, igual ou acima de 30 kg/m², com obesidade.
Contudo, se é fato que mais pessoas têm, hoje, IMC acima do recomendado pela OMS, é também verdade que a população vem se preocupando mais com a forma como se alimenta. É o que indica a pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção de Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), que registrou uma queda de 53,4% no consumo de bebidas açucaradas, incluindo refrigerante, entre 2007 e 2018, e que apontou que o consumo regular de frutas e hortaliças cresceu 15,5% em dez anos. Além disso, a prática de atividades físicas no tempo livre se ampliou em 25,7%, entre 2009 e 2018.
Essa sensível busca por uma mudança de hábitos, que não parece significar, necessariamente, corpos mais magros, tem sido percebido na rotina clínica da nutricionista Júnea Portilho. “Alguns anos atrás, arrisco dizer que 90% das pessoas procuravam atendimento com um propósito muito claro: perder peso. Agora, a maioria fala em ter saúde e qualidade de vida. Também falam em emagrecer, mas é algo que deixou de ser a maior prioridade. Acho que estamos fazendo uma nova transição nutricional, vindo de uma consciência que essa geração começou a ter agora”, observa. “Eu acredito muito na alimentação como aliada do bem-estar, como capaz de trazer melhora da disposição física, mental e sexual, gerando benefícios inclusive para a autoestima. E, subjetivamente, isso vai se refletir em (sensação de) felicidade”, argumenta.
Emagrecimento nem sempre significa mais saúde
Apesar de notar, sim, uma maior preocupação de seus pacientes com a saúde e o bem-estar, Júnea Portilho lembra que não são poucas as pessoas que, decididas a emagrecer, já chegam ao atendimento com receitas milagrosas de como alcançar um corpo idealizado. “Muita gente já entra na sala com o Instagram aberto, mostrando a barriga de modelos, de influenciadores, e dizendo que quer ficar daquele jeito. E tem muitos que chegam já usando medicamentos e suplementos por conta própria”, conta, detalhando que já identificou, nesses produtos, a presença de hormônios que podem ampliar o risco cardíaco e sobrecarregar fígado e rins.
Diante desse cenário, a nutricionista clínica e esportiva pondera que o processo de perda de peso deve ser moderado para que seja sustentável. “Essas dietas muito restritivas são estratégias nutricionais que podem ser bem-vindas em um momento, usadas em um período específico, como a dieta cetogênica ou a low carb. Mas elas não são adequadas para o longo prazo. Para que o sujeito se mantenha no peso que deseja alcançar, a aposta é a reeducação alimentar”, alerta.
O nutrólogo e gastroenterologista Bruno Sander, especializado em tratamentos para a obesidade, concorda que emagrecer não é necessariamente sinônimo de saúde. Para ele, tornou-se fundamental que as pessoas busquem informações confiáveis, não se deixando convencer facilmente por promessas de soluções milagrosas. Ele também cita que são frequentes os atendimentos em que indivíduos já chegam ao consultório orgulhosos por estarem seguindo a mais nova dieta da moda, que geralmente é popularizada por personalidades do universo fitness.
Como exemplo de que esse comportamento pode ser problemático, Sander conta que, recentemente, atendeu uma pessoa que, inspirada por uma blogueira, vinha seguindo uma rotina alimentar muito restritiva. Por conta disso, em pouco mais de um mês, a paciente desenvolveu uma encefalopatia de Wernicke, distúrbio cerebral que provoca confusão, problemas nos olhos e perda de equilíbrio e é o resultado de deficiência de tiamina.
Obesidade exige tratamento contínuo e multidisciplinar
“O emagrecimento saudável é aquele em que o sujeito obeso perde de quatro a cinco quilos por mês. Se estou com excesso de gordura há 20 anos, não é cabível que resolva isso em três meses”, avalia o nutrólogo, que referenda o entendimento da OMS, classificando a obesidade como uma doença crônica. Ele pondera, entretanto, que perseguir o corpo ideal pode não ser algo benéfico. “Costumo dizer que, se a pessoa precisar perder 30 kg , é melhor perder apenas 20 kg e conseguir manter esse peso do que perder tudo, mas, depois, recuperar essa gordura porque o emagrecimento não se deu de forma fisiológica”, avalia, fazendo menção à necessidade de o processo de perda de peso estar alinhado às necessidades de cada corpo.
Sander também alerta que a obesidade não tem cura. “O que significa que o emagrecimento vai ser como o controle da pressão ou diabetes. Portanto, se o sujeito é obeso e emagreceu, ele simplesmente está com a obesidade controlada naquele momento e, portanto, deve continuar fazendo o tratamento”, examina. Nesse sentido, indica que não existem procedimentos definitivos para a doença.
“Vou citar dois métodos que estão em alta hoje, sendo muito buscados pelos pacientes: o balão intragástrico (bola de silicone que é inserida no estômago para fins de perda de peso) e a gastroplastia endoscópica (procedimento indicado para pacientes com IMC a partir de 27 kg/m², que consiste em costurar as paredes do estômago, aproximando-as e deixando a região menor). Eles podem, sim, auxiliar no combate à obesidade. Mas não são uma solução definitiva do problema”, explica, detalhando que o tratamento deve ser sempre multidisciplinar.
“Alguns pacientes ficam assustados ao serem orientados a procurar um psicólogo, por exemplo. Eles ignoram que podem estar descontando na comida problemas emocionais. Pode ser que, ao chegar em casa, depois de um dia estressante, eles busquem prazer fácil na comida como forma de se recompensar. Então, mesmo que haja redução, se essa relação com a comida não for revista, voltaremos a ter problemas, pois é mais difícil manter o peso do que perdê-lo. Logo, se não for tratado no todo, não teremos resultados efetivos”, argumenta.
Consciência alimentar
Em consonância com os resultados da pesquisa Vigitel, que foi apresentada nesta reportagem e que demonstrou como a população brasileira parece estar mais atenta ao que come, a nutricionista Júnea Portilho diz observar que, cada vez mais, as pessoas se mostram conscientes das vantagens de se priorizar uma dieta nutritiva. Afinal, são muitos os estudos que demonstram os benefícios e os prejuízos que as escolhas alimentares trazem consigo. E, em um esforço de analisar essas pesquisas, os autores do mencionado artigo publicado pela Uneb anotam alguns desses efeitos.
“O consumo de gorduras saturadas está fortemente associado à ocorrência de doença coronariana, assim como estudos evidenciam que o consumo de gordura de origem animal está ligado à ocorrência de câncer de cólon, próstata e mamas. Ainda envolvendo a composição lipídica da dieta, há evidências de que a obesidade possa se relacionar à proporção de energia proveniente de gorduras, independentemente do total calórico da dieta”, escrevem. Por outro lado, os estudiosos do campo da nutrição registram que “há igualmente evidências de que dietas ricas em legumes, verduras e frutas cítricas (usualmente pobres em gordura saturada e ricas em fibras e diversas vitaminas e minerais), encontram-se associadas à ocorrência menor de alguns tipos de câncer, como os de pulmão, cólon, esôfago e estômago”.
Por que é difícil se alimentar de forma saudável?
Rotina. A reportagem de O TEMPO foi às ruas da capital mineira e, na região central, abordou pessoas aleatoriamente questionando se consideravam difícil manter uma dieta balanceada. A maioria respondeu que a falta de tempo para preparar os próprios pratos é um dos principais desafios na busca por construir uma relação mais saudável com a comida.
Preço. O valor cobrado pelos alimentos é outro empecilho comumente relatado. O dado é corroborado por uma pesquisa de 2019 da Associação de Promoção da Produção Orgânica e Sustentável (Organis). Segundo o inquérito, a preocupação com a saúde, citada por 84% dos entrevistados, é a principal motivação para a compra de itens livres de pesticidas. Porém, para 65%, o preço é o maior impedidor para um consumo mais efetivo desses produtos.
Acesso. Um outro fator que é encarado como um desafio são os chamados “desertos alimentares”. O conceito é usado para definir a realidade de pessoas que vivem em regiões em que o acesso a produtos saudáveis é precário, exigindo que as pessoas percorram grandes percursos atrás de boas opções. Por outro lado, itens nutricionalmente pobres, além de mais baratos, são fartamente ofertados e facilmente encontrados em locais próximos.
Mais uma vez, algo que se reflete na pesquisa conduzida pela Organis, que revelou que a dificuldade de encontrar orgânicos é a segunda principal causa pelo qual os consumidores optam menos por tais itens. A dificuldade de acesso foi citada por 27% dos respondentes.
Aplicativos. Esse cenário também é observado no universo virtual. Uma pesquisa do programa de nutrição e saúde da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), publicada no ano passado, indicou que é muito mais fácil encontrar, nos aplicativos de entrega de alimentos, opções de comida ou bebida não saudáveis. O estudo demonstrou que 92% dos estabelecimentos presentes nesse ambiente ofertam pelo menos um item ultraprocessado e açucarado em seus cardápios.
Fonte: O Tempo