Minas registrou pelo menos um crime relacionado ao racismo, por dia, em 2021
“Preta favelada”, “macaco falante”, “seu cabelo assusta”, “no meu carro não entra preto”. Esses são alguns xingamentos ouvidos e preconceitos vividos por pessoas pretas em Minas Gerais e registrados em boletins de ocorrências. Ao menos uma vez por dia uma pessoa foi vítima de crime relacionado ao racismo no Estado neste ano.
Em 304 dias, de janeiro a outubro de 2021, foram registrados 295 crimes de injúria racial, com causa presumida de racismo. No mesmo período, foram documentados 101 delitos relacionados ao preconceito de raça ou cor. Somados, os casos representam 396 crimes, o que significa uma média de 1,3 registros por dia.
Os dados são da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp-MG) e mostram que, neste Dia Nacional da Consciência Negra, a luta das pessoas pretas contra o racismo ainda está longe de acabar. Além da quantidade alta de crimes, houve crescimento de registros do ano passado para este ano entre os meses de janeiro e outubro.
Em Minas Gerais, os registros de injúria racial, com causa presumida de racismo, aumentaram 14,3%, passando de 258, em 2020, para 295 em 2021. Já se levarmos em conta somente Belo Horizonte, houve crescimento de 13,04% de um ano para outro, passando de 46 para 52 registros.
Na visão do advogado especialista em crimes contra a honra, Gilberto Silva, o fato de a Sejusp colocar os crimes de racismo e os de injúria racial em uma mesma classificação se deve ao recolhimento de informações dos boletins de ocorrência elaborados pelas polícias militar e civil, e não pelo inquérito aberto a partir deles.
“Quando uma pessoa registra o boletim de ocorrência, ela apresenta versão dela e pode falar que sofreu racismo ou injúria racial. Em função disso, nem sempre a tipificação do crime vem no REDS (Registro de Eventos de Defesa Social). A classificação do crime ocorre apenas quando há abertura de inquérito, e o delegado tipifica o delito e o apresenta ao Ministério Público, responsável por apresentar a denúncia”, comenta.
O advogado recebe em seu escritório de três a quatro demandas, por semana, de defesa relacionadas a crimes contra pessoas pretas. “Na minha percepção esse tipo de crime está aumentando. Com um reconhecimento maior dos órgãos que lutam contra o racismo e uma maior informação para a sociedade, as pessoas denunciam mais, mas se está havendo mais denúncia é porque estão ocorrendo mais crimes também”, considera.
De acordo com ele, os crimes vão de xingamentos no cotidiano a ataques pela internet, por meio de redes sociais e jogos; proibição das vítimas estarem em locais públicos, muitas vezes de forma velada, como em boates e bares e racismo em locais de trabalho. O próprio advogado já foi vítima do crime durante uma live em que ele falava justamente sobre o racismo.
Durante a exibição, uma pessoa comentou: “uau, macacos falantes”. Ele continuou a live normalmente. Uma outra advogada juntou provas do xingamento e, no dia seguinte, Silva foi até a delegacia e registrou o boletim de ocorrência.
“As pessoas fazem esse tipo de xingamento pela internet com a sensação de impunidade, mas a chance dessa pessoa ser identificada é de mais de 90%. O meu agressor mesmo já foi identificado. É importante que as vítimas façam as denúncias junto a Polícia Militar, Civil e que contratem um advogado de sua confiança para fazer a defesa”, destaca.
Foi o que fez a engenheira civil Fabiane Jardim que ao tirar uma carteira de identidade na Unidade de Atendimento Integrado (UAI), de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, teve sua foto recusada por estar usando tranças na imagem. Ela procurou a Polícia Civil e denunciou o fato, um inquérito foi aberto sobre o caso e está em andamento.
“Foi a primeira vez que me vi vítima de racismo por minha cultura. Eu me senti super sem graça e ao mesmo tempo senti raiva e indignação. Foi um mix de sentimentos. As pessoas precisam se conscientizar e ver que as diferenças culturais e raciais existem, ainda mais em um país como o Brasil. As pessoas precisam respeitar as diferenças”, considera.
Segundo ela, ainda existe também muito racismo velado. “Já ouvi diversas brincadeiras sem graça que ofendem. Eu escuto sempre as pessoas dizendo que meu cabelo era mais bonito quando era alisado ou que nem tenho a pele tão preta assim. Além disso, eu sou diretora de uma instituição e faço vistorias em imóveis junto a um homem branco. Sempre que chego aos lugares as pessoas procuram direto ele, por não acreditarem que uma mulher preta possa ocupar o cargo de chefia. As pessoas negras tem seu espaço reduzido todos os dias, reduzido pelo preconceito, pelo racismo e pela desigualdade que existe em nosso país. Ocupamos menos espaços na faculdade, menos espaço na classe média alta e isso precisa acabar”, conclui a engenheira.
O professor do Programa Direito e Relações Raciais da Universidade da Bahia, Samuel Vida, concorda com a engenheira em relação ao racismo se expressar de variadas formas, não apenas de maneira verbal. “Se a polícia aborda um grupo e se dirige apenas para os negros, isso também é racismo, mesmo que não se fale nada”, explica.
Ele critica a falta de dados específicos sobre racismo. “Há uma dificuldade em reconhecer a existência do racismo, que vai da polícia ao Ministério Público. O sistema de Justiça brasileiro ainda repercute a ideia de que o país tem uma democracia racial, no qual todas as relações são iguais”, aponta.
A bacharel em direito Maria Nazaré Paulino, de 58 anos, entrou para esse tipo de estatística no último mês. Ela preparava-se para embarcar em um veículo de aplicativo quando o motorista recusou o pedido. Ao questionar o motivo da rejeição, ela escutou o condutor dizer que no carro dele não entrava “preto, vagabundo.” Segundo a Uber, o motorista foi desativado da plataforma.
Vítima de racismo toca projeto para ajudar população negra
Apesar de agora oficialmente fazer parte da estatística, Nazaré carrega o estigma do racismo desde a infância, quando ainda não o compreendia de maneira absoluta. “Eu fazia balé, mas a professora não gostava. Percebia que ela ficava constrangida diante de mim, não intervinha no meu processo como fazia com as demais meninas. Nas apresentações, eu sempre ficava no fundo. Até que um dia, quando vi meu pai e minha mãe na plateia, fui até a frente e me apresentei. Com isso, ela não conseguiu me tirar de lá”, relembra.
E não era apenas no balé que Nazaré sofria situações semelhantes. Ao ingressar nas aulas de piano, aos 9 anos, ela ouviu um conselho de uma professora para mudar de instrumento. “Ela me perguntou: por que não estuda violino? Seu pai nunca conseguirá comprar um piano, e o violino é mais barato e é possível comprá-lo usado. Ou seja, as portas se fechavam até para ter acesso à arte”, rememora.
Felizmente, ela contou com o apoio de um pai consciente do racismo. “Ele me educou dizendo: ‘sua cor não vai te impedir de fazer nada.’” Nazaré levou o conselho a sério. Mesmo com todos os percalços provocados pelo preconceito, ela seguiu a vida ocupando espaços predominantemente brancos. E agora, depois de ter sofrido o racismo de maneira contundente, Nazaré quer que mais pessoas pretas vejam seus direitos respeitados.
Ela e a filha estão planejando um projeto de apoio jurídico e psicológico para pessoas que passam por situações semelhantes à vivida por ela. “Eu já tinha um projeto de prestar serviços de graça para a população negra, mas agora essa ideia ficou mais forte. Ao mesmo tempo que essa situação me destruiu, me deu a responsabilidade de fazer alguma coisa para quem sofre. As pessoas têm que entender que racismo é crime”, aponta.
Segundo Nazaré, o projeto ainda não tem data para ser lançado, mas já começou a engajar outros profissionais de saúde mental para colocá-lo em prática. “Nossa ideia é ter um número de atendimento jurídico mensal gratuito. Já que tive condições de chegar até aqui, de estudar e de viajar, eu acho que devo ajudar a população negra com risco social”, pondera.
Com uma grande rede de apoio, Nazaré conta que está emocionalmente bem depois de sofrer racismo vindo do motorista de aplicativo. “Eu não vou me vitimizar. Apesar de ser vítima, não sou uma coitada. Não vou deixar uma pessoa descontente e amarga entrar na minha vida e acabar com o que sou”, reitera.
Equiparação de injúria racial ao crime de racismo pode mudar cenário
Em outubro deste ano, o Supremo Tribunal Federal equiparou o crime de injúria racial com o de racismo a partir de um caso no qual uma idosa, de 79 anos, foi condenada em 2013 por injúria racial por ter chamado uma frentista de “negrinha nojenta, ignorante e atrevida”. A mulher pedia prescrição pela pena em função da cidade dela. Com a decisão do STF, porém, a injúria racial passou a ser imprescritível.
O tema voltou ao debate na última quinta-feira (18), quando o Senado aprovou um projeto de lei no qual a injúria racial passa a ser tipificada como racismo. O projeto precisa passar pela Câmara agora.
Advogado especialista em crimes contra a honra, Gilberto Silva explica que, caso o projeto seja aprovado, a decisão do STF será amplificada. “A matéria discutida no STF tratava apenas da imprescritibilidade, e isso deixou margens para várias interpretações. O projeto de lei discutido pelo Senado agora equipara de vez o crime de injúria racial com o de racismo, o que inclui a inafiançabilidade”, pontua.
Na proposta aprovada pela Casa Legislativa, o ato de ofender alguém em razão da raça, cor, etnia e procedência nacional terá, ainda, uma pena maior. Passará de um a três anos de prisão para dois a cinco anos de reclusão e multa.
O professor do Programa Direito e Relações Raciais da Universidade da Bahia, Samuel Vida, considera que essa decisão é um avanço na forma de reconhecimento da existência do racismo. “Com isso, o STF mantém aberto a ideia de que o racismo se expressa de diversas formas, como no caso do jovem negro que foi acusado por um casal de ter roubado uma bicicleta no Leblon, bairro do Rio de Janeiro. O casal não disse que estava o acusando por ser negro, mas a forma como foi tratato o racismo ficou evidenciado”, afirma.
Vida aponta ainda que esse tipo de mudança pode evitar manobras de pessoas detidas por racismo. “Acho que a imprescritibilidade é importante. O preso em flagrante ao cometer um crime de racismo não poderá mais usar dessa manobra (de alegar injúria) para sair ileso da acusação”, pondera.
Apesar de ser otimista em relação às mudanças que possam surgir a partir da decisão do STF, o professor considera que o racismo deve ser atacado além do direito penal. “O combate ao racismo deve buscar outras ferramentas nos direitos constitucional, civil e administrativo. Temos como exemplo a legislação disso no sistema educacional, que utiliza de literatura negra para educar as crianças”, afirma.
O professor se refere à lei 10.639, de janeiro de 2003, que estabelece que as instituições de ensino fundamental e médio deveriam incluir no currículo oficial a obrigatoriedade do ensino da cultura africana e afro-brasileira.
Registros de crimes de racismo
Injúria racial com causa presumida de racismo*
De janeiro a outubro
Em Minas Gerais
2019: 250
2020: 258
2021: 295
Aumento de 14,3% entre 2020 e 2021
Aumento de 18% entre 2019 e 2021
Em Belo Horizonte
2019: 52
2020: 46
2021: 52
Aumento de 13,04% de 2020 para 2021
De 2019 para 2021 os dados se mantiveram
Crimes de preconceitos de raça ou de cor
De janeiro a outubro
Em Minas Gerais
2019: 84
2020: 125
2021: 101
Redução de 19,2% de 2020 para 2021
Aumento de 20,2% de 2019 para 2021
Em Belo Horizonte:
2019: 13
2020: 38
2021: 20
Redução de 47,3% de 2020 para 2021
Aumento de 53,8% de 2019 para 2021
Fonte: Tipificação dada pela Sejusp que forneceu os dados*
Relembre alguns casos de racismo ocorridos em 2021
Mineira sofre racismo em boate de SP e denuncia: ‘ficaram ao lado do acusador’
No último domingo (14), a mineira Fabrícia Barbosa de Souza, de 25 anos, foi vítima de uma falsa acusação de furto de celular em uma boate de São Paulo e relatou que sofreu racismo. “Nessas situações, sempre procuram as pessoas de pele preta”, lamentou. Na boate, os seguranças teriam pedido para ela relevar o caso, já que o rapaz que fez as injustas acusações estaria bêbado. Ao tentar parar uma viatura da Polícia Militar (PM) paulista para registrar o caso, os militares teriam dito que aquela ocorrência não daria em nada.
Mulher é chamada de “preta vagabunda” dentro de carro de aplicativo
No último dia 17 de outubro deste ano a bacharel em direito Maria Nazaré Paulino, de 58 anos, foi chamada de “preta vagabunda” por um motorista de aplicativo que recusou a viagem por ela ser negra. O caso ocorreu na região Centro-Sul de Belo Horizonte e, após a denúncia, a Uber desativou o motorista suspeito do crime.
Modelo sofre injúria racial em Belo Horizonte: ‘Seu cabelo assusta’
No último dia 10 de outubro, a modelo Ludmila Cassemiro sofreu injúria racial, no bairro Nova Cachoeirinha, na região Noroeste de Belo Horizonte. Em sua conta no Instagram, ela mostra o vídeo de um homem dizendo que o cabelo dela “assusta” as pessoas. A modelo contou que estava a caminho da academia quando foi abordada pelo homem. “Eu sempre quis falar isso para você”, diz ele, que afirma ser fotógrafo. “Você é racista. Eu não quero te ouvir, guarda seu racismo para você”, retruca a vítima, antes de o homem se afastar.
Mulher denuncia racismo ao tirar identidade em Contagem: ‘Inadmissível’
Ao tirar uma carteira de identidade na Unidade de Atendimento Integrado (UAI), de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, a engenheira civil Fabiane Jardim, de 39 anos, teve sua foto recusada por estar de tranças na imagem. A atendente pegou a foto dela e levou para um supervisor que disse que por ela estar de tranças, a imagem não podia ser utilizada na identidade. Fabiane contou que usa tranças desde criança.
Porteiro denuncia ter sido vítima de injúria racial em lanchonete de BH
Um porteiro de um estabelecimento comercial na rua Guaicurus, na região Central de Belo Horizonte, de 32 anos, foi vítima de injúria racial em uma lanchonete da capital. No dia 27 de outubro, ao entrar no local, ele foi vítima de xingamentos que faziam alusão a cor de sua pele. As ofensas foram ditas por uma cliente que estava sentada na lanchonete consumindo bebida alcoólica.
Vencedora de concurso de beleza é vítima de injúria racial no Sul de Minas
Uma jovem negra de 19 anos ganhou um concurso de beleza e, após a vitória dela, começou circulou nas redes sociais um áudio de uma moradora de cunho racista. O caso ocorreu em Santo Antônio do Amparo, no Sul de Minas Gerais, no dia 17 de junho. No áudio, a mulher fala que “os pretos que estão mandando em tudo mesmo. É cota na escola, é cota aqui, é cota ali e os branco tudo levando tinta. Da próxima vez, nós temos que pular em um tanque de creolina e sair tudo pretinho aí pode candidatar a qualquer coisa que ganha”
Fonte: O Tempo