Conviver apenas com quem está em sua bolha é de fato a melhor opção?
‘Um estudo para criar pontes em um país que está deixando a conversa morrer’. Quem acessa o endereço @dojo.do certamente será fisgado pela pesquisa batizada de “Brasil de Bolhas”, idealizada e realizada pela Koga, a unidade de estudos comportamentais e estratégia da Dojo, agência voltada a ajudar empresas a pensar, planejar, desenvolver, lançar e nutrir suas marcas e produtos. Resumir o estudo seria tarefa temerária, dada a complexidade do tema, mas um dos dados que chamaram a atenção da revista “Trip” gerou uma postagem que acabou circulando em vários perfis: “69% dos brasileiros têm amigos com posicionamento iguais ou muito semelhantes ao próprio”. “Ou seja, vivem numa bolha onde há desmotivação para ter contato e debater ideias diferentes fora dela”.
No site citado, um detalhe chama a atenção: o primeiro capítulo analisa o contexto político e sociocultural a partir de 2013, para tentar entendermos “como chegamos até aqui”. Como todos se lembram, foi no ano aludido que aconteceram as Jornadas de Junho, para muitos, um ponto importante para entender a polarização política de um país agora novamente em ebulição, desta vez por conta do iminente segundo turno das eleições presidenciais, disputado por candidatos de vertentes opostas.
Mas, claro, as bolhas não se resumem a essa esfera. Na verdade, a máxima de que “futebol, política e religião” são temas que não devem ser discutidos – ao menos em certas ocasiões – é antiga, ainda que hoje pudesse ser acrescida por várias outras pautas. E as pessoas andam tão cansadas de discutir que posts com dizeres como “prefiro ter paz a ter razão” ou “feliz na minha bolha” circulam em fluxo caudaloso nos perfis.
Para falar sobre o tema, o INTERESSA conversou com o psicólogo Marcos Lacerda e com o psicanalista Evaristo Magalhães, além de ouvir algumas pessoas ditas comuns. De pronto, Lacerda e Magalhães endossam a constatação de que não se trata de, de modo algum, um fenômeno sem precedentes na história da humanidade. “Óbvio que se você olhar para trás, para a história da humanidade, a dificuldade com a pluralidade sempre esteve presente”, ressalta Marco Lacerda. “No entanto, parece que, com o advento da internet, isso ficou muito mais exposto, e a as pessoas estão sendo cada vez mais incentivadas a não refletir”.
O psicólogo alerta: “Eu preciso aprender a conviver com o di-fe-ren-te (em sua entonação, ele faz a separação silábica) para que eu me transforme, mesmo dentro da minha bolha. Porque, se eu vivo apenas com iguais, nenhum movimento de transformação acontecerá dentro de mim. E a sociedade se transforma pela diferença. Não adianta ficar dizendo: ‘Ah, porque a família está se acabando’. ‘Ah, a sociedade está acabando’. Não é nada disso. Ela está se transformando, porque é um organismo vivo. E o que faz a sociedade se transformar? Grupos e pessoas que, em dado momento, começam a dizer: ‘Pera aí! Não! As mulheres não precisam ser virgens para se casar’. Ou ‘Não, os homens também podem acordar de noite para levantar e cuidar dos filhos’. Ainda: ‘Não! Os homens podem, sim, usar roupa de qualquer cor’. Veja, isso, no meu tempo de criança, por exemplo, era impensável! ‘Coisas de mulheres’ eram ‘de mulheres’, as ‘de homens’ eram de ‘homens’. Então, é essa diferença que transforma a sociedade”, situa.
O psicanalista Evaristo Magalhães também ressalva que não se trata de um fenômeno fruto do advento das redes sociais, mas, sim, acredita que essas possam ter maximizado a formação das bolhas. “Porque introduzem um elemento novo, que é a possibilidade de a pessoa se esconder atrás da máquina para destilar o seu ódio. Isso não existia, pelo menos da forma como é hoje. Fora do virtual, no mundo real, você tem um certo medo da reação da pessoa, do que ela pode fazer com você. Que seja o medo de estar num espaço público e alguém te filmar, te gravar”.
Por outro lado, ele faz uma ressalva importante. “Mesmo quando nos encontramos com pessoas que têm um estilo similar ao nosso, não significa que vamos pensar igual sobre todos os pontos, a começar pelo fato de que não existe ninguém igual”. Portanto, Evaristo entende ser quase “inocente” o pensamento de que, estando numa bolha, a pessoa vai ter paz de espírito. “E tem outro ponto: ainda que sujeito tivesse paz de espírito dentro da bolha, não teria paz de espírito com ele mesmo, porque o outro pode até pensar como eu, mas eu não sou igual a mim, no sentido de que carrego coisas sobre as quais não tenho controle, coisas que inclusive me são muito estranhas, até mesmo inimigas. Então, é ilusão achar que estar bolha vai eliminar as diferenças. Não há a menor possibilidade de viver sem diferenças”.
Marcos Lacerda complementa. “Eu aprendo com a diferença. Não é preciso apenas eu me esforçar para conviver com o diferente, é preciso que eu me esforce para amar o diferente. Porque amar o igual é muito fácil, mas aí eu fico preso no espelho, é um movimento narcisista, Lembram da história de Narciso? Ele ficou preso à propria imagem, olhando a própria beleza no lago. Há duas versões da história. Uma, a de que ele achou tão bela aquela imagem que se jogou no lago e morreu afogado E a outra, a de que morreu de fome, porque não trocava (de posto) com nada nem ninguém. Eu não posso ficar perdido me olhando no espelho, e o outro igual é meu espelho. Eu preciso levantar, virar o rosto e olhar ao redor, e descobrir que amar a minha imagem, amar quem pensa como eu, conviver, respeitar, é fácil. Que mérito há nisso? Muito pouco. O mérito, e o crescimento pessoal e psicológico, está em suportar, amar e aprender com a diferença”.
A jornalista Viviane Miranda assente, mas, mesmo assim, conta que limou muitas pessoas da sua vida por decepção. “Outras, que são muito próximas, exclui das redes sociais e reduzi ao mínimo os assuntos sobre os quais podemos conversar. Não é só política. Hoje quase todo assunto é pólvora. Muito triste isso. Todos perdemos”, avalia ela, assumindo que estava lhe fazendo muito mal ver pessoas que gosta acreditando e defendendo coisas que sabiamente inverídicas “ou com valores que condeno, que vão contra o direito de existência do outro”. “Cheguei à conclusão que absolutamente nenhum argumento vai mudar o pensamento deles, está tudo muito consolidado por anos de desinformação, fortalecida por medos e preconceitos”, analisa.
A produtora Roberta Assis foi por caminho afim. “Infelizmente, há muita gente reproduzindo fake news. Bebem da fonte das mídias sociais, não procuram sites confiáveis. E viver em grupos assim fica insuportável”. Ela relata que teve problemas até no seio de sua família. “Às vezes, em encontros de família, percebo sobrinho querendo me provocar em assuntos políticos. Ele sabe do meu posicionamento sobre vacina, ciência, religião. Sabe que descordo de meritocracia, porque as pessoas não partem de condições iguais. Mas, vai me testando”, diz.
A relações públicas Glenda Souza ainda não jogou de todo a toalha. “Entre os amigos, eu sou conhecida como aquela que faz amizade fácil. Sempre gostei de conhecer novas pessoas, novos lugares e culturas. Não gosto de ficar apenas na minha bolha. Gosto de escutar histórias e conversar com quem tem opiniões diferentes das minhas. A gente está sempre aprendendo alguma coisa”. Mas sim, ela tem um limite: o respeito. “Posso escutar e não concordar e vice-versa. Mas nada de impor opiniões ou tentar mudar o outro. Cada um no seu espaço”, assinala.
Confira, a seguir, outros trechos da entrevista com Evaristo Magalhães
A formação de bolhas na nossa sociedade não é um fenômeno novo, mas, talvez por conta das redes sociais, e da polarização crescente (registrada em outros países do mundo), parece estar ou mais visível ou mesmo, de fato, recrudescendo…. O que pensa sobre isso? Estamos realmente vivendo um período no qual esse fenômeno se acirra ou, na sua opinião, a separação em grupos, com pouco diálogo com os outros, sempre existiu?
Essa expressão “na minha bolha” é um fenômeno novo, 20, 30 anos atrás, não usávamos. Eram grupos que possuíam uma identificação em comum. Essa é uma tendência nossa (do homem), vamos dizer assim, até natural. Se você observar, por exemplo, os animais, eles tendem a permanecer em grupos até por uma questão de proteção. Agora, mesmo quando nós nos encontrávamos com pessoas que possuíam o mesmo estilo ou parecido com o nosso – roupa, sentir, pensar -, isso não significa que nós pensávamos igual, porque não existe ninguém igual. Você tem ali algumas características que são semelhantes entre as pessoas e são essas características que as aproximam. O que eu vejo nessa expressão “bolha” – que é uma expressão que nós vamos substituir, aí, “grupo” por “bolha”, expressão que particularmente não gosto, é em função da forma que essa diferença veio tomando, que é a questão do ódio. Aí você não é apenas diferente de mim, você é um inimigo, “Eu te odeio por você pensar diferente de mim”. Então, quando as pessoas formam essas bolhas e criam esse invólucro em torno delas mesmas, é nesse sentido desse ódio, dessa raiva. Não acho que seja um fenômeno típico das redes sociais, talvez elas tenham maximizando isso, mas sempre existiu na história da humanidade. Você pode pegar lá, desde a Grécia, grupos se fechando, inclusive cidades construindo muralhas, fortalezas cercadas por fossa. Se você pegar pegar ali, na Idade moderna os diferentes, considerados loucos… A coisa que ficou conhecida como “nau dos insensatos”, as pessoas indigestas socialmente eram retiradas do meio social, colocadas numa barca e soltas no mar, na verdade. E, na verdade, não eram loucas, mas mendigos, prostituas homossexuais. Depois a gente teve aí movimentos muito claros do nazismo, do fascismo, das ditaduras, Aí, grupos militantes, guerrilheiros, se juntavam e criavam essas bolhas como uma forma de proteção. Mas vejo que esse fenômeno muito comum na história da humanidade adquiriu essa expressão de bolha exatamente porque nós vínhamos de um período em que as diferenças eram mais toleradas. Não digo que houve um respeito às diferenças de maneira purificada, mas vamos dizer que houve um período de maior tolerância, e, agora, é como se a gente a tivesse perdido, e aí criou-se a necessidade de formar esse invólucro de proteção.
Gostaria que falasse mais sobre o papel das redes sociais no incremento desse fenômeno…
Bem, o fenômeno sempre existiu e, agora, há esse nome, bolha, não sei como é isso na língua inglesa, francesa, mas aqui, no Brasil, ganhou essa expressão. Olha, eu acho, que o fenômeno das redes sociais serve para poder incrementar essas bolhas porque a gente tem aí um elemento novo, que é essa coisa da máquina, de você poder se esconder atrás da máquina para destilar o seu ódio, a sua raiva. Isso não existia, pelo menos da forma como é hoje, porque é bem mais complicado no tête-à-tête, fora do virtual, na vida real, você ser agressivo com uma pessoa, pelo menos da forma como se é agressivo no mundo virtual. E você não é assim no mundo real porque você tem medo da reação da pessoa, do que ela possa fazer com você, medo porque você pode estar num espaço público e muita gente está te vendo, te filmando, te gravando… Então, eu acho que vamos ter que encontrar mecanismos cada vez mais precisos para descobrir de onde estão vindo esses discursos de ódio, que seriam discursos nos quais as pessoas não respeitam as diferenças. Para que a gente possa combater isso. Porque a ética é condição de possibilidade para nossa existência enquanto civilização. E aí, qualquer recurso, por mais tecnológico que ele seja, que venha a ser usado para fazer com que o sujeito aja de um modo antiético… A ética é a coisa mais importante. Como falei, é condição de possibilidade. Tudo só é possível por causa dela, e aí, se você tem um recurso que facilita que as pessoas saiam dessa condição civilizatória e possam exercer esse seu componente bárbaro e selvagem, que a civilização surgiu justamente para poder combater esse comportamento agressivo, então, assim, eu acho que combater essas pessoas, vasculhar esses sites, essas fontes de onde estão emergindo essas agressões, essas notícias falsas, é uma questão de ética. Isso é fundamental, isso tem que ser feito. Nós não podemos ser agressivos, a não ser em condições assim muito específicas. Imagina se todo mundo resolver ser agressivo? Vamos cair no caos, na barbárie. Então, se as redes estão funcionando como um recurso no qual as pessoas estão se escondendo para poder agir de maneira grosseira, estúpida, é fundamental que isso seja coibido. Não que a agente acabe com elas, de jeito algum, mas é fundamental que elas sejam descobertas e que elas respondam pelos atos delas.
Há muita gente cansada de discutir – tanto que já há anos vem circulando um print dizendo “prefiro ter paz a ter razão”… Neste caso, ter a sua bolha e, assim, obter a sonhada mais paz de espírito, pode ser considerada uma boa escolha? Ou é saudável ter que lidar com quem pensa diferente?
A primeira coisa, é que há uma certa ingenuidade aí, de as pessoas acharem que a bolha propicia uma paz de espírito. Por exemplo, eu tenho uma bolha, tenho meus amigos que pensam como eu, mas não tenho paz de espírito, não. Porque ainda que sejamos pessoas de direita, ou de esquerda ou de centro. As pessoas de direita, elas não pensam igual, assim como as de esquerda, ou as de centro. Então acho que meio que uma inocência, achar que porque formou uma bolha vai ter paz de espírito. E tem mais uma outra coisa, ainda que sujeito tivesse paz de espírito dentro da bolha, não teria paz de espírito com ele mesmo, porque o outro pode pensar como eu, pode ser até igual a mim, mas eu não sou igual a mim, no sentido de que eu carrego coisas as quais não tenho controle sobre elas, coisas que me são muito estranhas, inclusive coisas que me são inimigas. Por exemplo, a minha velhice, o fato da minha velhice, de que vou envelhecer, de que vou morrer. Penso que é inocência achar que se eliminarem todas as diferenças no campo das relações pessoas vão conseguir viver sem ter que lidar com as diferenças. Do mesmo jeito que aquilo que Sartre falou ‘o outro é meu inferno’, eu digo que mesmo o outro não sendo o meu inferno, eu sou o meu inferno. Ou seja, é ilusão achar que entrando na bolha vai eliminar as diferenças, não há a menor possiblidade de viver sem diferenças.
Mas há um limite para trocar ideias com pessoas que pensam diferente da gente? Li o depoimento de uma garota que disse, em uma postagem sobre bolhas: “Não faço nenhuma questão de ter pessoas com certo tipo de posicionamento por perto, pela minha saúde mental e pelo meus valores. Nossas opiniões podem divergir sobre futebol, roupa, carro, comida etc etc não quando envolvem pessoas passando fome, discurso de ódio, facismo, intolerância, preconceito e tantos outros absurdos escancarados na sociedade brasileira”. Concorda com ela que há um limite?
Concordo com ela que há um limite, e ele é sempre a violência, a agressividade. Agora, isso significa que vamos abandonar essas pessoas agressivas, vamos virar as costas, enfim, vamos deixar de conversar com elas? Nesse sentido, eu acho interessante pensar sob o ponto de vista da psicanálise, sabe? Porque uma das características da escuta psicanalítica é o silêncio. Então, não é a toa que ele valoriza tanto o silêncio, porque as pessoas, elas só se movimentam no vazio. Porque quando você preenche, você também impede o outro de movimentar. O silêncio, aí, ele funciona como uma espécie de vazio Geralmente quando uma pessoa chega na clínica – e aí não especificamente uma pessoa agressiva, violenta – mas, enfim, uma pessoa que está se fazendo mal, com um quadro de compulsão, de dependência química, ou fixada demais num determinado sintoma, a gente deixa ela no silêncio, no vácuo, e fica observando os movimentos dela. E a gente espera que em algum momento ela faça um movimento em direção contrária ao que está fazendo. E aí quando ela minimamente muda de posição, a gente puxa, pontua, marca esse movimento, e aí é nesse momento que a pessoa tem a oportunidade de perceber o lugar que ela estava, se distanciar desse e, aí, se dá conta de que há outros caminhos, outras possibilidades. Outras várias possiblidades, além dessa, de ficar nessa posição agressiva, revoltada, violenta, com os outros ou com ela mesma, no caso de comportamento mais compulsivo ou uma dependência química, por exemplo. E na verdade, o silêncio é uma forma de diálogo. O silêncio fala. E quando o psicanalista fica em silêncio, é exatamente para fazer o outro falar. Ele vai falando até esgotar tudo o que tem a falar e a gente fica esperando o que vem. A expectativa é a de que sempre virá algo diferente, novo. Algo mais lúdico, mais criativo, mais inventivo. Então é só nesse ponto que não concordo, quando ela fala que quando se trata de um comportamente mais odioso, a opção dela é dar as costa para essas pessoas. Nesse sentido, acho que a psicanálise oferece um caminho interessante para lidar com essas pessoas muito agressivas.
Fonte: O Tempo