Minas Gerais registra um estupro a cada duas horas e vinte e quatro minutos
A cada duas horas e vinte e quatro minutos, uma vítima de estupro registra o crime em uma delegacia de Minas Gerais. Em apenas um dia, a média é de dez ocorrências. Em uma semana, 70. E os casos só aumentam: quando se compara janeiro de 2023 com o mesmo período do ano passado, as ocorrências cresceram 14%.
Segundo dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp), os números mais recentes são de janeiro deste ano, quando foram registrados 310 casos de estupro — 39 a mais do que no ano passado. Desses, 229, isto é, 74%, foram cometidos contra vítimas consideradas vulneráveis, crianças menores de 14 anos ou pessoas com algum tipo de efemeridade ou deficiência que não conseguem apresentar resistência.
Somente nessa quinta-feira (16), em Minas Gerais, vieram à tona crimes cometidos por cinco homens suspeitos de estupro, sendo que quatro deles teriam abusado de crianças e adolescentes e pessoa com deficiência. Algumas das vítimas teriam sofrido por anos nas mãos dos suspeitos (Veja mais abaixo).
Foi o caso de duas adolescentes, de 13 e 14 anos, moradoras de Nova Serrana, na região Centro-Oeste do Estado. A menina mais velha denunciou o pai no último domingo (12) e contou que o homem, de 41 anos, a estuprava desde os 7 anos de idade. A garota mais nova também afirmou que era abusada. Casos de estupro dentro de redes familiares são, na verdade, os mais comuns, e dificultam o registro das ocorrências.
“Quanto mais próximo o vínculo com o agressor, mais difícil fica para a vítima publicizar a violência, registrar o abuso. Quando se trata de um parente, um vizinho, um companheiro, existe a pressão de que a denúncia vai destruir a família, e a vítima se questiona, mais vezes, se tem culpa ou se entendeu direito”, explica a pesquisadora Ludmila Ribeiro, do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais (CRISP-UFMG).
As duas meninas tiveram o apoio da mãe, de 33 anos, que denunciou o abuso, mas nem sempre é dessa forma. De acordo com Ludmila Ribeiro, os números de registro de crimes de estupro, mesmo estando altos, são, historicamente, subnotificados. “Primeiro, por vergonha da vítima. Vivemos em uma cultura que responsabiliza a mulher e a questiona sobre suas decisões. Ela se vê como errada, tem medo de ter provocado o crime e de não ter se feito direta com um ‘não’”, afirma.
Além disso, a pesquisadora pontua que a própria forma de denunciar, na maioria das vezes, não é acolhedora como deveria. “Há uma dificuldade de acessar as Delegacias Especializadas em Atendimento à Mulher (Deams). Quando a vítima vai a uma delegacia tradicional, ela pode entrar em contato com profissionais que não estão preparados para lidar com a denúncia de estupro. E, se questionada ou inviabilizada, ela acaba desistindo de realizar o registro”, diz Ludmila. Em todo o Estado, com 853 municípios, são pouco mais de 69 Delegacias Especializadas em Atendimento à Mulher (Deams).
Quando as vítimas são homens ou meninos, o registro também é um desafio. Receosos de afirmar que estão ou estiveram em situação vulnerável, eles tendem a se silenciar diante de uma violência, por medo de serem criticados ou diminuídos.
“Essa é uma questão muito difícil porque casos de abuso com meninos são muito comuns, inclusive por familiares, e os pais muitas vezes acreditam que não têm com o quê se preocupar”, diz a pesquisadora. “No caso de meninos e homens, há ainda a ameaça de serem lidos como homossexuais. Eles se preocupam em terem a sexualidade questionada caso denunciem um abuso”, afirma Ludmila Ribeiro.
É para vencer a vergonha e a culpabilização da vítima e conscientizar pais e crianças sobre abuso sexual que a pedagoga e vice-presidente do Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres de Belo Horizonte, Tetê Avelar, acredita ser importante investir na educação.
“Enfrentar o estupro e a cultura da violência é um trabalho para diversas áreas, desde a segurança até a saúde e a educação. Para que a vítima saiba identificar um abuso e tenha força para registrá-lo, ela precisa aprender a cortar o ciclo da violência. Isso é educação”, explica.
Para Tetê Avelar, o trabalho de conscientização em escolas é importante, inclusive, porque auxilia as crianças, que são vulneráveis, a identificarem assédio e conseguirem contar a alguém de confiança. A pedagoga acredita que a educação pode evitar desfechos ruins.
“A escola é um local que precisa estar aberto ao diálogo e à conscientização. As crianças precisam aprender o que é dar consentimento, o que é importunação, o que pode ou não, partes do corpo onde ninguém pode tocar”, explica a pedagoga. “É na escola, também, que se tem espaço para aprender o que não fazer com o coleguinha, onde não tocá-lo”, continua.
A importância de denunciar
De acordo com a delegada Cristiane Angelini, da Delegacia Especializada de Investigação à Violência Sexual, nos últimos anos, as vítimas, principalmente mulheres, estão mais conscientes da violência e, por isso, acabam sendo registrados mais casos de estupro.
“As vítimas estão mais empoderadas, chegam com menos medo, cientes do que sofreram”, diz. “Há, inclusive, uma percepção de que as mulheres estão conseguindo rede de apoio. E isso é muito importante, quando uma mulher vê que outra está sendo assediada e passa a ajudá-la”, continua a delegada.
Para Cristiane Angelini, é importante que seja feita a denúncia, uma vez que só assim a polícia e os órgãos responsáveis conseguem tomar as medidas necessárias para proteção da vítima e investigação do suspeito.
“Só uma parcela dos casos de estupro chega aos órgãos, e por isso é importante uma conscientização da sociedade. É importante entender que a culpa nunca é da vítima. Independentemente da situação, ela precisa ser acolhida”, afirma.
Nos casos em que o agressor é familiar ou companheiro da vítima, a polícia indica a solicitação de medida protetiva para reforço da segurança. Ainda, é avaliado caso a caso com a equipe, podendo ser oferecido abrigo a vítima que não se sentir confortável em voltar para casa.
“Fazemos um primeiro atendimento, em que é registrada a ocorrência, e a vítima é ouvida e acolhida. Em casos mais graves, podemos encaminhá-la para o atendimento médico em um hospital de referência. Ela recebe um protocolo humanizado, e o agressor se torna um investigado”, explica a delegada.
Cinco casos em um dia
Apenas em um dia, nessa quinta-feira (16), em Minas Gerais, vieram à tona crimes cometidos por cinco homens acusados de estupro. Duas das vítimas foram irmãs adolescentes, de 13 e 14 anos, de Nova Serrana, na região Centro-Oeste de Minas. A menina mais velha denunciou o pai no último domingo (12) e contou que o homem, de 41 anos, a estuprava desde os 7 anos de idade. A garota mais nova também afirmou que era abusada. A mãe das meninas, de 33 anos, que percebeu que elas apresentaram uma mudança de comportamento e resolveu questioná-las. Após a confissão das filhas, o pai passou a ser procurado pela polícia, mas não havia sido encontrado até a publicação desta matéria. Ele já havia sido preso por estuprar uma sobrinha.
Uma menina de 11 anos também teria sido abusada pelo pai por diversas vezes e acabou engravidando do homem de 46 anos, em Ninheira, na região Norte do Estado. O suspeito foi preso nessa quinta-feira (16) e, até a publicação desta matéria, não havia mais informações sobre o estado de saúde da garota. As investigações dão conta de que os abusos eram cometidos quando a menina ficava com o pai aos fins de semana. O homem ameaçava a mãe da adolescente, dizendo que ela perderia a guarda da filha se não permitisse o contato com ele.
Nessa quarta-feira (10), mais uma criança teria sido vítima de um estuprador. Um homem, que não teve a idade revelada, foi preso após passar as mãos em uma menina de 10 anos dentro de um ônibus em Juiz de Fora, na Zona da Mata. De acordo com a Polícia Militar, a garota estava com os responsáveis quando o crime aconteceu, e foram eles, inclusive, que chamaram as forças de segurança. O abuso foi registrado por câmeras no veículo.
Crime contra ‘amiga’ e esposa
Uma mulher que tem déficit mental, cuja idade não foi revelada, também teria sido abusada por um homem, que se dizia amigo dela, em Muzambinho, no Sul de Minas. O suspeito de 54 anos foi preso nessa quinta-feira (15). Conforme apurações, o homem se aproveitava da confiança que a família da vítima depositava nele para ficar sozinho com ela e cometer o crime. Um parente da mulher, porém, em determinada situação, viu o estupro e denunciou o caso à polícia.
Por fim, um homem de 43 anos foi preso nessa quarta-feira (15) suspeito de estuprar a companheira, de 40, em Campos Gerais, no Sul do Estado. A mulher contou que sofreu a violência durante a manhã, mas, por medo, só conseguiu denunciar o marido na parte da tarde. O casal tem quatro filhos, de 7, 12, 15 e 17 anos, e os jovens teriam presenciado a mãe ser ameaçada pelo pai.
Como denunciar
Denúncias podem ser feitas por meio da Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (disque 180) ou do Disque-Denúncia Unificado (disque 181).
O registro da ocorrência pode ser feito na delegacia policial mais próxima ou em Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs). Em Belo Horizonte, há uma unidade na Avenida Barbacena, 288, Barro Preto.
Pela Delegacia Virtual, podem ser registrados casos de ameaça, lesão corporal e vias de fato, além de descumprimento de medida protetiva. Por meio da plataforma digital, as vítimas ainda podem solicitar a medida protetiva enquanto estiverem fazendo o registro.
Número de estupros cometidos em Minas Gerais ao longo dos anos
Estupro consumado
- 2023: 81 (só em janeiro)
- 2022: 979
- 2021: 1.007
- 2020: 1.000
- 2019: 1.230
- 2018: 1.468
Estupro contra pessoas vulneráveis*
- 2023: 229 (só em janeiro)
- 2022: 2.864
- 2021: 2.938
- 2020: 2.668
- 2019: 3.163
- 2018: 3.488
*Pessoas vulneráveis são os menores de 14 anos, os enfermos ou pessoas com deficiências mentais e aquelas que, por outro motivo, não puderem oferecer resistência contra a violência.
Fonte: Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp)
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