‘Justiça’ com as próprias mãos desafia polícia na era da influência na internet
Foi por um vídeo compartilhado nas redes sociais que um morador de Copacabana, no Rio de Janeiro, convocou parceiros para formarem, juntos, um grupo de “justiceiros”. “Ninguém vai fazer nada?”, questionou o homem, com indignação a recentes furtos e roubos. O caso que chamou atenção não é tão incomum quanto parece. Um dos poucos estudos sobre linchamento no Brasil chegou a conclusão que, no país, ocorre pelo menos um linchamento ou tentativa por dia. Em 60 anos, desde 1.955 até 2015, 1 milhão de brasileiros fizeram parte de retaliações na posição de agressores – 16,6 mil ao ano. Mas, segundo especialistas em segurança pública, uma mudança ocorreu nos últimos anos: a busca por justiça pelas próprias mãos ganhou espaço nas redes sociais, onde os “justiceiros” viram influencers.
O estudo é do sociólogo José de Souza Martins, professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP), chamado “Linchamentos: a justiça popular no Brasil”. Segundo o especialista em segurança Jorge Tassi, as retaliações são um tipo de “vingança privada” e podem ocorrer de formas diferentes. Ele explica que os linchamentos diários estão mais ligados a reações imediatas. “É o linchamento provocado por um fato. Um homem decide roubar um ônibus cheio, e as pessoas não o deixam sair e o agridem. Esse é um dos mais comuns, quase rotina. É um comportamento de massa. A pessoa não reagiria se estivesse só, mas, com outros, joga na rua, espanca e foge”, afirma.
Foi o que aconteceu, por exemplo, em novembro deste ano em Belo Horizonte. Um homem de 43 anos foi agredido por passageiros do ônibus da linha 1505 (Alto dos Pinheiros/Tupi) dentro do coletivo. O linchamento começou depois que as pessoas perceberam que o suspeito estava assediando uma mulher.
O assédio sexual gerou um dos casos mais graves em 2023 em Minas Gerais. Em julho, um homem de 55 anos foi morto após ser linchado por moradores do bairro Senhora de Lourdes, em Governador Valadares, na região do Rio Doce. As agressões foram praticadas por várias pessoas após o homem mostrar o pênis em uma rua do bairro. O caso, então, passou a ser investigado como homicídio pela Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG).
Fazer justiça com as próprias mãos é crime?
A PCMG afirma que o crime de “fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite” é descrito no artigo 345 do Código Penal. A pena é de detenção de quinze dias a um mês ou multa, mas o suspeito pode responder por outros crimes mais graves “tais como lesão corporal e tentativa de homicídio”. A Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) não tem dados disponíveis de linchamento em Minas Gerais.
“É um comportamento de massa. Não é do João, da Fernanda, mas do grupo. É a ideia de que se está todo mundo batendo, também vou dar um chute. Em alguns casos, as pessoas envolvidas vão até mesmo se arrepender”, acrescenta Tassi.
Mas quando a vontade de fazer “justiça” alcança as redes sociais e acontece de forma programada, chega-se a uma nova forma de linchamento, explica o também especialista em segurança Arnaldo Conde: “entra em um lugar de anomalia social, de descontrole. É uma experiência, praticamente, de estado sem lei. Uma consequência que chega à rua de uma deterioração da segurança do Estado”.
De indignados à “influencers”
A repercussão nas redes, nesses casos, funciona como um estimulante. A cada postagem de incentivo à retaliação, mais pessoas começam a acompanhar – como um movimento de massa, mas online. “Nessa questão de rede social, além do crime, há uma dose imensa de narcisismo. A internet estimula o individualismo. Foi criada uma figura do justiceiro. Alguns, ficam até famosos. E hoje as pessoas se sentem no direito de repetir qualquer ato que vêem online”, alerta.
Fake news e preconceitos são agravados na influência por vingança
Um dos perigos da busca por justiça fora dos órgãos de segurança do Estado, de acordo com Jorge Tassi, é a culpabilização imediata de alguém que ainda não foi julgado, principalmente na era das fake news. “É aquilo que parte de uma ficção. Às vezes, não existe o fato, ou a pessoa culpada não é aquela. Isso já é um processo de barbárie, e parte de duas coisas: da cultura de relativizar tudo, própria da sociedade, e do comportamento de massa. Alguém fala que foi roubado por fulano, e um grupo imediatamente se mobiliza contra ele. Quando vai ver, não era o suspeito, e já é tarde demais”, diz.
A situação fica mais grave a partir do momento em que o alvo pode ser qualquer um com características tidas como suspeitas pelos próprios “justiceiros”. “Se eu me deparo com um homem que me lembra de um estuprador, ele vira um alvo. Existe muito preconceito, discriminação nesse sentido. Há ainda a ideia de que não basta chamar a polícia, não basta a prisão, tem que matar. Isso é um problema sério”, analisa.
O especialista reforça que o acionamento das forças de segurança precisa ser respeitado para que seja garantido o processo de justiça jurídico. “Não é aceitável que se faça vingança privada. Existe um processo, uma investigação da culpa, uma análise da pena que é justa. Além disso, só o Estado pode fazer uso da força de uma forma aceitável, só ele sabe medir. Se uma pessoa já está dominada e continua sendo agredida, algumas vezes, torturada, os ‘justiceiros’ são criminosos e podem responder por lesão corporal e tentativa de homicídio, por exemplo”, explica.
Para o estudioso em segurança pública Arnaldo Conde, os “justiceiros” da internet são um novo desafio aos órgãos de segurança. “As redes sociais fazem explodir os casos de maneira absurda, e a repercussão é um incentivo, com certeza. São novos desafios, ocorrências mais complexas que podem esconder casos muitos específicos. Cada suposto justiceiro pode ter uma motivação diferente e um grupo de seguidores diferente”, analisa.
O que devo fazer caso suspeite ou presencie um crime?
A orientação é acionar a Polícia Militar pelo disque 190 ou procurar a delegacia mais próxima. A Polícia Civil de Minas Gerais afirma que todos os crimes devem ser levados ao conhecimento das equipes de segurança “para que sejam apurados por meio de investigação criminal cientificamente aplicada e o exercício da polícia judiciária para conhecimento de autoria, materialidade, motivo e circunstância, bem como a identificação civil e criminal, objetivando a segurança pública e a promoção de direitos”. “A PCMG orienta à população a não fazer justiça pelas próprias mãos”, reforça.
A Polícia Militar também foi questionada, mas ainda não respondeu. A reportagem será atualizada com o posicionamento.
Fonte: O Tempo