Tomar remédio ou não? Enquanto alguns se recusam, outros fazem uso excessivo
Os cartazes coloridos anunciam em letras garrafais a palavra que faz tremer as bases e provoca cócegas na palma da mão de muita gente, impaciente para sacar logo a melhor forma de pagamento e aproveitar a oferta. Como o psiquiatra Bruno Brandão ressalta, não é incomum ser “acossado” – para utilizar o título do mais famoso filme de Jean-Luc Godard – pelos mais variados tipos de “promoções” de medicamentos nos dias atuais, e isso nem vem de hoje. “Essa é uma pergunta polêmica, e imagino que você já saiba a resposta”, inicia, antes de se mostrar incomodado com o fato de que a mesma estratégia para comercializar bombons e sabonetes sirva para vários remédios.
“É inegável que existe uma pressão da indústria farmacêutica para que as pessoas consumam mais medicamentos. Nós, médicos, precisamos tomar cuidado com essa questão, assim como o paciente que, indiretamente, é levado a isso através da publicidade”, sustenta. Neste mês, dados da consultoria Redirection International mostraram que a indústria farmacêutica movimentou cerca de R$190 bilhões em 2023, mantendo-se no topo das que mais investem globalmente, seguida pela indústria da tecnologia, ao financiar pesquisas para o desenvolvimento de remédios. “Obviamente, ela vai querer um retorno de todo esse investimento bilionário”, observa o psiquiatra, que atribui o “consumo desenfreado” também ao “excesso de informações distorcidas”.
Excessos
Talvez como uma reação a essa mercantilização da saúde, muitas pessoas passaram a rejeitar peremptoriamente o uso de medicamentos, o que gerou um movimento para a outra extremidade. Nesse caso, Brandão verifica uma repetição da polarização política que tem se espalhado pelo mundo. “Ter a máxima cautela na hora de tomar um medicamento é bacana, mas isso é diferente de condenar, ser contra. É preciso buscar o caminho do meio. Tem gente que, ao menor desconforto, com uma leve dor de cabeça, já se refugia nos remédios. Mas, se você tem uma recomendação, que foi feita através de um diagnóstico, não só pode como deve tomar o remédio”, diz.
Brandão alerta para o fato de que “qualquer excesso é deletério para a saúde”. “Se você tem uma doença e está se privando do tratamento, está colocando a sua saúde em risco da mesma forma de que se estivesse tomando um remédio sem necessidade”. Nesse ponto, o psiquiatra traz uma explicação bastante didática. “Todo medicamento tem efeito colateral e contraindicação. Vale a pena tomar remédio quando os benefícios superam os riscos. Se você está tomando remédio sem necessidade, não vai ter nenhum benefício e vai ficar apenas com os riscos dos efeitos colaterais”, pontua. A prática de um estilo de vida saudável é, ainda, o melhor remédio.
Alimentação balanceada, atividade física para sair do sedentarismo, dar vazão a tudo que auxilia e evitar tudo que prejudica o sono formam, basicamente, o tripé que o especialista define como “estilo de vida saudável”. “Para muitas pessoas, esses comportamentos serão suficientes para regularizar a saúde, e elas conseguirão viver sem medicamentos, mas, para outro grupo, ainda assim serão insuficientes”. No entanto, só o fato de inserir no seu dia a dia essa “filosofia” tende a diminuir a necessidade de recorrer às medidas farmacológicas. “Na prática, as pessoas usam remédios para corrigir um estilo de vida disfuncional, ou acreditam que apenas um estilo de vida saudável será suficiente. É preciso buscar o equilíbrio”, orienta Brandão.
Balança
Conhecer os efeitos colaterais, os prováveis benefícios e as contraindicações dos medicamentos, que podem estar relacionadas a doenças cardíacas, respiratórias e, até, a perigosas reações alérgicas, é de “fundamental importância”, assim como o chamado perfil de interação. Essas avaliações são concernentes aos profissionais da área, o que leva ao forte desaconselhamento da propalada automedicação. “Se a pessoa já faz uso de um anti-hipertensivo, por exemplo, pode diminuir a eficácia ou potencializar o efeito de um antidepressivo. O médico olha tudo isso antes de prescrever uma medicação e a pessoa que se automedica, muitas vezes, não”, reforça.
Brandão acredita que essa balança ainda está pendendo para o lado das pessoas que se medicam sem o devido critério. “Tem muita gente resistente, que precisava estar medicada e não está, mas, de um modo geral, as pessoas estão se medicando mais, não sei se da forma correta”, pondera. Um “exemplo clássico” é o do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, mais conhecido pela sigla TDAH, com uma prevalência de 2,5% na população adulta do Brasil. “Mas, na prática, o número de pessoas que se autointitula com TDAH é muito maior. Nesse bolo, tem muita gente sendo medicada sem necessidade, seja com prescrição, seja no mercado clandestino”.
Preconceito
Um paciente que vai ao oftalmologista e recebe uma receita para usar óculos dificilmente vai alegar que prefere enxergar mal. Um cardiopata ou alguém com uma infecção também tem menos chances de escolher a morte ou o agravamento da doença em detrimento do uso de antibióticos ou de uma cirurgia. Esses exemplos são utilizados pelo psiquiatra para afirmar que “a resistência a medicamentos acontece, principalmente, na área de saúde mental”, o que ele atribui a um preconceito sociocultural arraigado, e relacionado à “natureza específica desse tipo de diagnóstico”.
“Em saúde mental, nós utilizamos o termo diagnóstico dimensional, que é diferente do diagnóstico categorial, aquele em que eu determino se a pessoa tem ou não um câncer”, exemplifica. Ele esclarece que, para o diagnóstico dimensional, é preciso avaliar o indivíduo ao longo de um certo período da vida, com noção de profundidade e temporalidade, atuando por meio de tendências que se revelam através de “uma média”, e não de definições incontestáveis. O nó do problema reside na característica própria dos transtornos mentais, que, segundo Brandão, “são meio que invisíveis”.
“Conseguimos ver no laboratório a anatomia do cérebro, que é um órgão, mas a mente é um produto do cérebro. Pensamento, atenção, memória, concentração e afetos como humor, raiva, medo e vergonha são parte desse produto. Se o cérebro adoece, tenho repercussões na mente, mas não consigo ver; e as pessoas, muitas vezes, levam para o lado da ‘força de vontade’, acreditando que só ‘pensar positivo’ vai resolver, mas, quando analisamos o cérebro de perto, detectamos vários circuitos em funcionamento alterado, que vão necessitar de uma medicação química para serem corrigidos”, afirma.
Estigma sobre saúde mental influencia na resistência a remédios, diz psiquiatra
Esse estigma que recai sobre a saúde mental, como se fosse “uma fraqueza de caráter e não uma doença”, é um tabu a ser superado, que influencia na resistência a remédios. O psiquiatra Bruno Brandão aponta que a diabetes, por exemplo, também é diagnosticada dimensionalmente, ou seja, por meio de uma espécie de média analítica. “Você avalia a glicemia do paciente e faz uma estimativa. Mas todo mundo, em algum momento da vida, pode ter uma glicemia mais alta ou mais baixa, porque ela oscila. Baseado numa análise epidemiológica, o médico vai definir um valor de corte”, destaca.
O mesmo procedimento vale para a saúde mental. “Precisamos recolher e observar um conjunto de sintomas que acompanham a pessoa ao longo de um período, gerando prejuízos funcionais e sociais que levam ao sofrimento”, sublinha. A dificuldade estaria no fato de que “todo mundo experimenta esses sintomas ao longo da vida”, o que exige um rigoroso estudo médico. Brandão considera primordial diferenciar sentimento de transtorno.
“Antidepressivo não trata tristeza, isso é a vida acontecendo, não somos uma árvore, temos emoções. O que tratamos é transtorno”, ratifica. Ele retoma o exemplo do TDAH para explicitar sua tese. “Todo mundo pode ter desatenção, hiperatividade, dificuldade de se concentrar, o que precisamos verificar é a dimensão e a profundidade de como isso acontece, da mesma forma que tristeza, flutuações de humor e temperamento não significam, necessariamente, uma depressão”, finaliza.
Fonte: O Tempo