MG registra aumento de até 98% em crimes raciais: ‘Não vou me calar’
“Eu me sinto desmotivada, sem ânimo para trabalhar. Mas não vou me calar. Sinto que ao denunciar estou fazendo isso por mim e por tantas pessoas que sofrem o mesmo crime, que é tão inaceitável”. O relato é da streamer em plataforma digital Arlinda de Lima, de 37 anos, uma das vítimas de racismo em Minas Gerais nos últimos meses. Em um ano, os registros deste tipo de crime saltaram 98% — passando de 189 em 2022, para 376 em 2023.
Os casos de injúria racial também apresentaram aumento nos últimos doze meses — 44% (de 496 para 718). Somente no primeiro bimestre de 2024, a alta foi ainda maior — 186%. Nos dois primeiros meses do ano passado, foram registrados 82 casos. No mesmo período deste ano (janeiro e fevereiro), foram 235 (entenda a diferença entre os dois crimes abaixo). O aumento de ocorrências junto às autoridades de segurança é, na análise de especialistas, reflexo dos movimentos sociais e, ao mesmo tempo, mostra confiança na apuração dos casos.
Era um dia comum de trabalho de Arlinda quando ela passou a ser atacada por uma colega de profissão nas redes sociais. A streamer foi chamada de “urubu de carniça”. “Ainda falou que para eu ficar branca igual ela deveria fazer igual o Michael Jackson e passar pó no rosto”, disse. O ataque racista foi registrado em boletim de ocorrência.
“É lamentável esse comportamento, pois além de ser um retrocesso, ela também é uma figura pública que exerce influência nos seguidores. Depois que a denunciei, voltei a ser atacada e chamada de ‘cachorra suja’. Ela ainda tem a coragem de dizer que não é racista pois foi, segundo ela, criada por uma babá negra e até namorou um homem negro. O típico discurso que já estamos cansados de ouvir”.
Casos semelhantes ao de Arlinda estão sendo cada vez mais recorrentes. Os dados apresentados pela Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) são corroborados pelo advogado Gilberto Silva, ex-presidente da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil em Minas Gerais (OAB-MG). “O racismo é uma arma para destruir e matar o ofendido. As vítimas quando nos procuram chegam, na maioria das vezes, com baixa autoestima, pensamentos suicidas, sonhos dilacerados e sequer desejam manter contato com a sociedade. Em muitas das vezes, estão deprimidas e com sonhos destruídos. O crime racial ofende a honra da pessoa”, pontua.
O que Arlinda viveu está de longe de ser um fato isolado, pelo contrário. Recentememte, em Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira, uma mulher foi presa por injúria racial contra vizinhos. Ela disse que as pessoas negras não deveriam morar no mesmo prédio que ela, pois aquele lugar não era de “macaco que come lixo”. A família alegou, na época, que a suspeita teve surto psicótico, porém o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) constatou que ela estava sob efeito de bebida alcoólica.
O aumento nos dados de crime racial não é uma realidade apenas do Estado. Conforme o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de 2023, o país registrou um crescimento de 29,9% no número de casos de injúria racial e 35% nos de racismo na comparação entre 2021 e 2022.
Os crimes raciais também ocupam o noticiário esportivo internacional. O brasileiro Vinicius Jr., mais uma vez, foi vítima de manifestações ofensivas partindo de torcedores rivais, na Espanha. O fato mais recente aconteceu quando o atacante do Real Madrid sequer estava envolvido na partida. Ele foi alvo de uma música da torcida do Barcelona que entoava: “Vinicius, morra”, antes do confronto contra o PSG, pela Champions League, em 16 de abril.
‘Não vou me calar’
Posicionar-se e denunciar os casos de racismo é a principal ferramenta na opinião de Arlinda para uma mudança no cenário. “Resolvi buscar ajuda, pois muitas vítimas se calam. Sei que o que estou fazendo também pode auxiliar outros que sofrem o mesmo que eu. Grito por mim e pelas outras pessoas que passam por isso. Não vou me calar. As pessoas podem achar a minha cor feia, porém não estão autorizadas a falar o que quiserem. Os criminosos precisam entender a responsabilidade dos atos cometidos”, desabafa.
Na tentativa de superar os traumas deixados pelas ofensas, Arlinda recorre ao auxílio de profissionais de saúde mental. “Venho fazendo acompanhamentos psicológicos, mas confesso que o alto preço inviabiliza. Por isso, recorri ao SUS (Sistema Único de Saúde) para dar continuidade ao tratamento”.
Por que tanto racismo?
O aumento nos dados de crime racial pode ser entendido pela atuação do movimento negro. “Temos um grupo articulado e consciente dos seus direitos e deveres que impulsiona as denúncias. Antes, o crime acontecia, mas ficava por baixo do pano. Agora, as vítimas têm plena consciência do papel que exercem na sociedade e fazem valer a retomada da autoestima: ‘Não mexe comigo, pois sou igual a você’”, explica a socióloga Mara Greide.
A legitimação do crime, por parte de figuras do cenário político, é um fato que precisa ser levado em consideração, conforme pontua a socióloga. “Os espaços de denúncia foram vulnerabilizados e, assim, se perdeu a força para denúncia. Ao termos uma mudança no governo, as políticas públicas passaram a ser fortalecidas e as vítimas encorajadas a denunciar”.
‘Confiança nas investigações’
Juiz e integrante da Comissão de Práticas Antirracistas do Fórum Socioeducativo de Belo Horizonte Afrânio Fonseca Nardy afirma que o aumento nos registros de injúria racial e racismo pode ser analisado pelo fato de as pessoas estarem mais confiantes de que não ficará impune.
“Elas não apenas confiam mais no sistema de justiça, mas também exigem de forma enfática respeito à igualdade em um contexto de diversidade sociocultural. Há hoje uma denúncia maior no sentido de que foi o racismo que criou a ideia de raça como forma de subalternizar alguns grupos sociais e privilegiar outros. Assim, da mesma forma que a população exige reparações por esses processos históricos, também demanda maior respeito ao direito fundamental à igualdade de acesso a direitos e participação na vida social do país”, disse.
O magistrado destaca ainda as mudanças na lei, ao longo dos anos, como encorajador nas denúncias. “A história da evolução da legislação brasileira na luta contra o racismo possui muitos marcos importantes, na atual ordem constitucional, que se inicia com a inclusão de norma sobre o crime de racismo na própria Constituição de 1988. Tal evolução culmina com a entrada em vigor do Estatuto da Igualdade Racial, a Lei n. 12.288, de 2010. Essa lei consolida e organiza todo o sistema de combate à discriminação e às demais formas de intolerância etnico-raciais”, enfatizou Nardy.
Fora da administração municipal
Em Belo Horizonte, condenados por crimes de racismo poderão ser impedidos de assumir cargos públicos. É que um Projeto de Lei (PL) tramita na Câmara Municipal e tem, justamente, o objetivo de ser mais uma ação no combate contra os crimes raciais.
A proposição, de autoria do vereador Wagner Ferreira (PDT), foi apresentada em novembro. “Fiz isso em novembro, no mês da Consciência Negra, para que se torne um marco de moralidade e de combate ao racismo em Belo Horizonte, em especial na administração municipal”, afirmou.
O parlamentar lamentou o aumento dos registros de crimes raciais, mas ponderou que isso é demonstra o encorajamento das pessoas em denunciar. “A estatística demonstra que as pessoas não estão aceitando passivamente o preconceito que insiste em se enraizar na nossa sociedade e estão lutando pelo direito à igualdade, que é assegurado na Constituição”.
“O projeto tem exatamente a proposta de reforçar os pilares da igualdade, da justiça e do respeito à diversidade nos cargos públicos, uma vez que o crime de racismo atenta contra a dignidade da cidade. A proposta é que nenhuma pessoa condenada por racismo ou injúria racial possa ser nomeada para cargos da administração municipal em Belo Horizonte, até que cumpra a pena pelo crime que cometeu”, complementou.
O PL já foi aprovado em primeiro turno e, agora, espera ser acrescentado na pauta de votação para que seja apreciado em segundo turno. Caso aprovado, o texto irá para análise do prefeito que decidirá pela sanção ou veto.
Denuncie
Quem encoraja as vítimas a procurar a delegacia e denunciar o crime é a delegada Silvia Freitas, titular da Delegacia Especializada em Repressão aos Crimes de Racismo, Xenofobia, LGBTfobia e Intolerâncias (Decrin). “Percebemos que as pessoas, realmente, estão mais encorajadas, tendo mais coragem de ir à Polícia Civil e nos órgãos competentes para relatar os abusos, as ofensas que sofreram. Gostaria de ressaltar a importância de registrar todos os casos de abuso, de racismo, de ofensas raciais. É muito importante o registro porque o infrator será punido”, afirmou.
O boletim de ocorrência pode ser feito, como explica a delegada, em qualquer delegacia. “A partir daí é iniciada a investigação com oitiva da vítima, de eventuais testemunhas que a vítima apresentar, unimos a documentação pertinente aos fatos e também fazemos a escuta do investigado. Uma vez concluídas todas as diligências, o inquérito é relatado e encaminhado à apreciação do poder Judiciário”.
Qual a diferença entre injúria racial e racismo?
De forma geral, o racismo é entendido como um crime contra a coletividade, enquanto a injúria é cometida contra um indivíduo. Desde janeiro de 2023, a legislação brasileira equiparou a pena de injúria à de racismo. Desde essa lei, a pena para o crime de injúria aumentou de 1 a 3 anos para de 2 a 5 anos de reclusão.
A injúria é prevista no Código Penal, no artigo 140, que trata sobre ofensas à dignidade e contra elementos referentes à religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência. Nessas situações, as penas variam de 1 mês a 3 anos.
Com a equiparação da injúria racial ao racismo, a pena foi aumentada e passou a ser de 2 a 5 anos quando a injúria é relacionada a raça, cor, etnia ou procedência nacional.
Dados
- Registros de Injúria Racial – Consumado em Minas Gerais
2022 – 496
2023 – 718
2023 (jan/fev) – 82
2024 (jan/fev) – 235
- Registros de crimes resultantes de preconceitos de cor ou de raça – Racismo
2022 – 189
2023 – 376
2023 (jan/fev) – 55
2024 (jan/fev) – 26
Fonte: Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública