Precarização: MG tem 80% dos professores estaduais com contratos temporários
A legislação Federal determina que a contratação de professores temporários deve ser usada para atender às necessidades especiais. Em Minas Gerais, essa excepcionalidade parece ter virado regra. Oitenta por cento dos professores que atuam nas escolas estaduais são temporários. Minas lidera o ranking com relação a esse tipo de contratação entre os estados da União — seguido de Tocantins, com 79%, Acre, com 75%, Espírito Santo, com 73% e Santa Catarina, com 71%. Os dados foram divulgados pela Organização Não-Governamental (ONG), Todos pela Educação.
Para especialista em educação ouvida pela reportagem, a “escolha” por profissionais contratados, ao invés de concursados, pode estar ligada a questões orçamentárias e à dificuldade técnica da Secretaria de Estado de Educação (SEE) para a contratação de docentes qualificados. “Os temporários acabam sendo mais baratos para o Estado por não estarem na carreira, não ter evolução de salário ou estar dentro da previdência. Outras hipóteses são dificuldade técnica da secretaria de realizar concursos públicos”, diz a coordenadora de Políticas Educacionais do Todos Pela Educação, Natália Fregonesi.
Em contrapartida, a SEE/MG garante que tem aumentado o quadro de servidores da área. Entre 2014 e 2023 foram realizados seis certames. No mesmo período, quase 42 mil nomeações foram feitas — sendo que 24 mil ocorreram nos últimos cinco anos. O total de nomeações no período corresponde a cerca de 25% do número de professores que atuaram no Estado em 2023 (163.242).
Alunos passam dias “abandonados”
Para além da ausência de direitos adquiridos com o tempo — como o pagamento de quinquênios, licença sem vencimento, entre outros — os contratados enfrentam outras adversidades,conforme docentes e também alunos. O Estado demora a concluir as contratações no início e também nos casos de reposição de vagas. Enquanto os alunos ficam sem aula, os contratados passam pela ansiedade anual por uma vaga, além de não contarem com qualquer tipo de estabilidade.
Uma professora que atua em uma escola estadual da região de Venda Nova, em Belo Horizonte, que pediu anonimato, conta que o Estado costuma liberar as contratações apenas após o Carnaval, no final de fevereiro. Em caso de licença médica, a admissão de substitutos só é feita após 15 dias de afastamento. Enquanto as contratações não ocorrem, a direção da escola tenta minimizar o impacto ao aprendizado. “Se falta o professor, a vice-diretora tem um banco de atividades. Ela aplica a atividade para os alunos. Isso é algo que acontece muito. Isso compromete muito para o aluno e também para o professor. O servidor tem direito a licença de saúde. Ele adoece, mas não tem quem o substitua. Isso compromete a aprendizagem”, lamenta.
A realidade também é vivenciada pelo aluno Matheus Gabriel, de 18, que cursa o último ano do ensino médio em uma escola estadual no Centro de BH. Ele conta que já chegou a ficar três semanas sem uma das matérias por falta de profissional. “Isso já ocorreu umas três vezes. Às vezes o professor é afastado por problemas de saúde e demora até três semanas para reposição. No ano do Enem isso é ainda mais prejudicial, já temos uma pressão grande e sem professor piora”, reclama.
Insegurança é pesadelo para concursados
Em Minas Gerais, o contrato temporário é válido por 12 meses. A cada ano, os docentes precisam passar a ansiedade de aguardar para se candidatar e ser, ou não, chamado para trabalhar. Além disso, o local do “novo” trabalho sempre é uma incógnita. Uma professora da região Centro-Sul de BH, que possui contrato temporário e pediu anonimato, conta que a situação trabalhista é marcada por insegurança e mudanças constantes de escolas. Falta de rotina que afeta diretamente na qualidade de ensino. “(Ter professores temporários) compromete por causa da aprendizagem. Você não tem segurança no processo porque sempre muda o professor, isso por causa das licenças, férias, entre outros motivos. Tem também a questão da insegurança do trabalhador, que pode estar em uma escola hoje e em outra amanhã. Para manter a renda, por exemplo, você precisa estar em três, quatro escolas”, conta.
Natália Fregonesi defende que o poder público precisa de um amplo diagnóstico para conseguir fazer o planejamento da força de trabalho e entender quantos professores serão necessários. “Aumentar concursos públicos e investir no aumento da qualidade. Professores temporários é mecanismo da legislação e eles sempre vão existir. Eles são importantes para garantir estudo em locais de difíceis acessos, mas o ideal é que sejam em casos específicos”, finaliza.
Em uma década, número de professores caiu 3.801
Além de ter mais professores contratados em comparação com os concursados, o número total de docentes em Minas Gerais tem caído. Eram 167.043 professores em 2014, número maior que os 163.242, em 2023, conforme dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI). No período, em alguns anos, a quantidade de educadores foi ainda menor, sendo que em 2019 apenas 150.768 educadores atuaram na rede ensino. Neste ano, até março, haviam 156.897 docentes cadastrados nas escolas do Estado, uma perda de 6.345 profissionais em relação a 2023. A queda total foi de 3.801.
A Secretaria de Estado de Educação (SEE) garante que o número de professores que atuam no Estado está adequado, mesmo diante da citada queda. Mas a falta de uma professora auxiliar tem atrapalhado o aprendizado e o cotidiano de Kamila Ferreira, de 15. A doméstica Edina Ferreira, de 40 anos, concilia a rotina entre o trabalho como autônoma e o compromisso de tentar ajudar sua filha Kamilla Ferreira, de 15, com os estudos. A menina, diagnosticada com amaurose congênita de leber (LCA) — uma doença que afeta a visão — está sem professor auxiliar na Escola Estadual Afonso Neves, na região da Pampulha, em Belo Horizonte. A ausência da profissional fere a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), que determina como obrigatória a presença de um professor de apoio para estudantes com deficiência auditiva, visual, física, intelectual ou com autismo. “A Kamilla já não quer mais ir a aula, e eu entendo o lado dela. Mas não tenho formação, estudei só até a oitava série, não consigo ajudar a minha filha”, desabafa.
A ausência de um professor de apoio para Kamilla aponta para a redução de profissionais na rede estadual de ensino em Minas Gerais. É o que explica a coordenadora-geral do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (Sind-UTE-MG), Denise Romano. “Isso ocorre principalmente após a municipalização de matrículas. O Estado se livrou e transferiu as matrículas para o município, que absorveram a demanda de alunos do ensino fundamental, então diminuiu as matrículas e os professores passaram a ser obrigação dos municípios”, explica.
Questionada, a Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEE/MG) afirma que o número de Professores de Educação Básica (PEB) convocados para atuar na rede estadual de ensino é “flutuante e está relacionado a diversas questões”. A pasta destaca que realiza anualmente o Plano de Atendimento Escolar (PAE), a partir de informações sobre matrículas e necessidades pedagógicas em todas as escolas estaduais, visando planejar a oferta de vagas escolares para o próximo ano e organizar toda a rede estadual de ensino.
Dessa forma, segundo o governo de Minas, o quantitativo de profissionais contratados para ocupar cargos vagos pode variar conforme as demandas apresentadas e o número total de turmas formadas em cada nível e modalidade de ensino. Variação que, conforme a SEE, inclui também cargos de substituição, com carga horária inferior a cinco aulas, além da contratação de professores para projetos temporários ou excepcionais, como Reforço Escolar e Agrupamento Temporário, de acordo com as necessidades dos projetos pedagógicos realizados pela pasta em cada ano.
Sobre a situação relatada pela mãe de Kamilla, em Belo Horizonte, a SEE/MG afirmou que a estudante é acompanhada por uma profissional do Atendimento Educacional Especializado desde o início do ano letivo.”Esclarecemos que, em maio deste ano, uma nova professora de apoio foi contratada, em substituição, para atender a aluna mencionada. Desta forma, reforçamos que a estudante nunca ficou desamparada”, pontua.
A SEE/MG destaca que a Superintendência Regional de Ensino (SRE) Metropolitana C, responsável pela coordenação da escola, seguirá acompanhando o caso e dando todo apoio necessário à estudante.
Parceria Público Privada (PPP) em Educação pode ser alternativa?
O debate sobre a utilização de Parceria Público Privada (PPP) na educação ganhou força nos últimos meses após os governos de São Paulo e do Paraná avançarem com projetos que adotam o método nas escolas estaduais. O modelo prevê que as empresas sejam responsáveis pela construção ou manutenção, conservação, gestão e vigilância das unidades escolares, enquanto diretores ficariam encarregados apenas da parte pedagógica. O projeto reduziria, portanto, custos em manutenção ao Estado.
O método proposto, no entanto, não é novidade em Minas. Isso porque Belo Horizonte acolhe o primeiro projeto em forma de PPP em educação do país. Há cerca de dez anos em operação, o programa é resultado de uma iniciativa da prefeitura e da concessionária Inova BH, empresa da Transpes, que beneficia aproximadamente 25 mil crianças, jovens e adultos da capital mineira. A parceria foi desenvolvida e colocada em prática sob a forma de licitação pública, ficando então a cargo da concessionária a construção e a administração de 55 Escolas ao longo de 20 anos.
A nível estadual, segundo a coordenadora-geral do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (Sind-UTE-MG), Denise Romano, três escolas adotam um método experimental parecido, integrante do Projeto Somar, do governo estadual. A iniciativa consiste na gestão compartilhada de escolas estaduais que oferecem o ensino médio, em parceria com uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos selecionada por meio de edital de chamamento público.
As três unidades que integram o projeto piloto são as escolas Coronel Adelino Castelo Branco, no centro de Sabará, Francisco Menezes Filho, no bairro Ouro Preto, em Belo Horizonte, e a Maria Andrade Resende, no bairro Enseada das Garças, também na capital. Para Denise o projeto desonera o Estado da necessidade de contratação o que pode acarretar em uma diminuição ainda mais acentuada das admissões de professores pelo Estado. “Quem contrata não é mais o governo, é a escola, no caso a PPP. O sindicato avalia que a queda no número de profissionais está relacionada também a esse projeto, que impactou nas contratações. Isso não é pedagógico para o processo de disciplina e aprendizagem”, avalia.
A coordenadora de programa e políticas da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, Marcele Frossard, avalia que apesar da PPP em educação se apresentar como uma relação de custo e benefício, o método pode representar uma violação de direitos. “É dever do Estado fazer e realizar a garantia do direito (à Educação). Mesmo que as PPP apresentem pesquisas de excelentes resultados, elas não devem substituir o papel do estado e nem deve reduzir a máquina pública, reduzindo o número de professores concursados. Se elas atuam nesse sentido, elas são prejudiciais e acabam ocasionando violações”, finaliza.
Fonte: O Tempo