Dentro e fora da web, atitudes têm influenciado desperdício de 41 mil toneladas de comida no Brasil
Faça o seguinte exercício: role o feed da sua rede social mais próxima. Veja vídeos com narrações acompanhadas de imagens de muita comida. Geralmente, são hambúrgueres com inúmeras camadas sendo esmagados com a mão até o recheio transbordar à mesa, ou suculentos pedaços de carne recebendo um banho de queijo por cima, que entorna até cair no chão. Parece apetitoso?
De fato, é sim. São vídeos que causam água na boca e nos despertam o desejo urgente de comparecer até o endereço mais próximo. Resultado quase que imediato da fórmula aceleradora do consumo. Mas esse também é o reflexo do novo segmento gastronômico que você, com certeza, já cansou de ver no Instagram, no Tiktok ou em qualquer outra rede social. Nada parece prender mais o espectador do que itens que derretem, pingam e se esticam e deixam invisível uma outra questão: o desperdício de comida.
“Na busca pelo ‘instagramável’, o que menos importa hoje é a comida de verdade. Entendo que existe público para isso, mas é uma postura desrespeitosa pelo alimento”, acredita Nenel Neto, jornalista gastronômico há mais de 10 anos e criador de conteúdo digital e que se sente bombardeado pelo Instagram, que, pelo algorítmo, empurra dezenas de vídeos de influenciadores diferentes “derramando” a comida, mas todos muito parecidos entre si.
“Em um mundo com tanta desigualdade, me incomoda ver às vezes só um influenciador digital com uma mesa enorme, com todo o cardápio do local, repleta de comida, dando apenas uma mordida em cada receita e desperdiçando a comida que fica inapta para outra pessoa comer. Essa consciência deve partir tanto por parte dos influenciadores quanto pelo restaurante. É uma consciência coletiva”, opina.
A opinião do jornalista endossa dados recentes sobre o mapa do desperdício alimentar do Brasil. A comida que geralmente não se come e é descartada no prato faz parte das 41 mil toneladas de alimentos desperdiçadas por ano no país. Desse total, 15% ocorre em restaurantes – algo em torno de 6.000 toneladas, segundo o World Resources Institute (WRI) Brasil, uma instituição de pesquisa internacional.
Vale lembrar que, em 2020, foi publicada a Lei de Doação de Alimentos brasileira, que dispõe sobre o combate ao desperdício de alimentos e a doação de excedentes para consumo humano. Essa lei não detalha os aspectos sanitários que garantem que os alimentos doados estão seguros. Mas é claro que existem regras a seguir: os estabelecimentos que doarem alimentos impróprios para consumo podem ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa por danos causados pela ingestão dos alimentos. Ou seja: os restos dos pratos dos clientes não devem fazer parte dessa doação.
A Organização das Nações Unidas (ONU) registra que 735 milhões de pessoas passam fome no mundo atualmente e 2,3 bilhões estão em situação de insegurança alimentar. Somente no Brasil, são 21 milhões de pessoas que não têm o que comer todos os dias e 70, 3 milhões em insegurança alimentar.
Para Juliana Muradas, chef da Deli Fresh Food, cozinha com foco em alimentação saudável, não desperdício e aproveitamento total dos alimentos, ainda “faltam políticas de Estado que promovam condições favoráveis ao agronegócio, com aumento de investimentos, melhorias na malha de transportes, conectividade nas áreas rurais, eficiência dos processos de produção e distribuição. Sem isso, continuaremos sendo estatística de números assustadores que sustentam há tanto tempo a roda do contraste fome x desperdício”, disse.
Redução começa em casa
Circulam nas redes sociais um vídeo em que uma jovem grita com a mãe ao se recusar a comer a comida feita no dia anterior. No vídeo, a garota afirma que vai jogar a comida no lixo, pois se recusa a comer alimento requentado, enquanto a mãe aparece visivelmente indignada. A situação vai contra a política do desperdício zero e da sustentabilidade, que deveriam virar palavra de ordem na cozinha dos brasileiros.
Ainda de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), estima-se que 17% de toda a produção global de comida é desperdiçada, sendo a maior parte dentro das casas. Uma das causas também diz sobre o padrão de consumo, que traz uma percepção para alimentos que não estão dentro do ideal para serem ingeridos – seja por conta do tamanho ou até pelas pequenas imperfeições. “Acredito que nosso maior erro começa quando escolhemos comprar mais do que somos capazes de consumir. Quando cometemos esse erro de cálculo, nos prejudicamos tanto individualmente quanto como coletivamente”, disse a chef Juliana Muradas.
Não desperdiçar comida não se tornou só um estilo de vida sustentável, como uma necessidade. “Isso porque, jogamos dinheiro no lixo sempre que compramos o que não é necessário, seja comida, roupa, sapato, brinquedos, enfim, qualquer bem material que não será utilizado na sua integralidade. Mesmo comprando menos, ainda assim algum alimento estiver com os dias de validade contados, podemos pensar em doar, enquanto o alimento ainda está em perfeitas condições de uso”, opina Juliana.
Ainda, de acordo com a chef, frutas, verduras e legumes são os que mais são descartados no dia a dia, justamente os mesmos alimentos que devemos consumir prioritariamente para uma dieta saudável e nutritiva. Ela alerta também sobre a importância de consumir ingredientes sazonais, que estão na época, pois são mais baratos, além de estarem mais suculentos, saborosos e cheios de nutrientes.
Outro ponto focado no planejamento é a oportunidade de dar destino para tudo o que compra. “Criar hábitos de consumo responsável dá trabalho, mas é necessário. Podemos começar reduzindo a quantidade de compra dos alimentos perecíveis e adotarmos o lema só compramos o que usamos! Nossa geladeira não é horta e as batatas que, literalmente, brotaram por lá e irão para o lixo, fazem falta no prato de outra pessoa. Entender que somos parte do problema não ajuda, o que ajuda mesmo é nos responsabilizar pela solução”, exemplifica.
Na prática
Segundo Raymara Matos, docente de gastronomia do Senac, para adotar hábitos alimentares mais sustentáveis, várias práticas podem ser incorporadas na rotina diária, como dar preferência a frutas e legumes da estação. “Consumir alimentos locais e sazonais, por exemplo, é uma maneira eficaz de reduzir a pegada de carbono associada ao transporte e armazenamento prolongado. Além disso, planejar refeições e armazenar alimentos adequadamente podem ajudar a minimizar o desperdício, um problema crescente que contribui significativamente para o impacto ambiental negativo”, destaca.
A chef Marina Linberger, celebrada na internet com aulas sobre conservação e aproveitamento total dos alimentos, também alerta sobre a consciência de como armazenar os alimentos da maneira correta. “Hortaliças, por exemplo, estragam muito rápido, pois possuem muita água em sua composição. É necessário, após sua higienização, secá-las bem e armazená-las em potes na parte mais baixa da geladeira”, ensina. Nem todos os vegetais precisam ser guardados na geladeira, como a batata, por exemplo. Já a cenoura, mandioquinha, chuchu, brócolis e pepino, podem ir à geladeira para aumentar seu tempo útil. “Uma dica que eu sempre dou é sobre armazená-los em potes com água, que ajudam a aumentar a durabilidade”, explica.
Dicas de como evitar o desperdício
Evite comprar itens desnecessários. Faça uma lista com os itens que realmente serão utilizados e observe com atenção o prazo de validade dos produtos;
Escolha os produtos perecíveis por último para evitar a perda de temperatura;
Em casa, armazene os produtos de forma adequada e na temperatura correta;
Utilize as frutas e verduras em sua totalidade;
Não estoque produtos perecíveis, pois são alimentos que possuem vida útil curta;
Consuma os vegetais, frutas e verduras que já estão com a maturação mais avançada, ou faça preparos.
Fonte: Cencosud Brasil