Morte e vida: os relatos de profissionais que lidam diariamente com perdas
Em uma sala de uma rua calma no bairro de Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo, um grupo se reúne para falar de morte, dor e alegria.
O encontro faz parte do evento “Inspirações sobre vida e morte”, que durante uma semana ofereceu programações diversas voltadas para uma discussão indigesta para o brasileiro: falar sobre a morte.
Na sala, o americano Roy Remer é quem conduz o dia de aprendizados. Diante dele um grupo heterogêneo: psicólogos, médicos intensivistas, uma médica veterinária, assistentes sociais, dona de cemitério, capelãos…
Remer é diretor do Zen Hospice em São Francisco, uma instituição pioneira em cuidados paliativos. Ele e sua equipe treinam voluntários para cuidar de pessoas no fim da vida: “Nossos voluntários são lembrados em nosso treinamento que morrer é uma experiência espiritual. Independentemente do contexto religioso ou espiritual de alguém, morrer é tanto sobre espírito quanto sobre o corpo. Nossos voluntários foram treinados para manter a experiência sem julgamentos”, disse em entrevista ao G1.
Mas na aula desta terça-feira (25) a atenção dele não está voltada para os pacientes, mas para os diferentes cuidadores, que lidam com perdas diariamente. Afinal, quem cuida de quem cuida?
“Eu sou oncologista e perdi um paciente recentemente. Foi uma perda muito difícil e passarei por isso de novo. Preciso aprender a cuidar de mim”, diz emocionada uma das médicas na sala. Ela abre a “porteira” para as apresentações ficarem mais emocionais.
Depois dela, outra médica revela que perdeu o pai. “Sobrou” para ela, a médica da família, boa parte do peso da morte dele.
“Fiquei feliz de poder cuidar dele, mas teve muita coisa difícil de enfrentar. E ao mesmo tempo eu tinha os meus pacientes também”, diz.
Entre elas senta a única médica veterinária do grupo. “Eu cuido da internação dos animais e acredito que, assim como na medicina, estamos aquém nos cuidados paliativos de animais. O que eu posso fazer, além de buscar uma cura que não virá, para melhorar o fim da vida daquele bichinho?”.
E as apresentações continuam.
“Eu sou assistente social de um asilo. Lido com diversos tipos de luto todos os dias. O luto antecipado de quem precisa colocar um familiar na instituição, o luto dos funcionários quando perdemos alguém, o luto dos outros moradores e o meu luto”, diz uma das presentes.
“Eu convivo com eles por muito tempo e quando eles morrem, para alguns é uma vaga que abre, para mim, é uma perda que não consigo chorar”, continua.
A dona de um cemitério veio de outro estado em busca de ajuda: “Estou aqui pelos meus funcionários. Quero ensiná-los a se cuidarem. Eles lidam com morte 24 horas por dia”.
O luto de quem cuida e vive a morte tão de perto é com frequência “atropelado” pelo dia a dia. Amanhã outros morrerão. Vida que segue? Sim e não.
Para quem lida diariamente com a morte é importante aprender a entender seus próprios sentimentos em relação a ela, para que os relacionamentos não sejam frios, desumanizados.
“Vocês fazem um trabalho muito importante e queremos que hoje cuidem de vocês também. Hoje é sobre aprender a cuidar de vocês para poderem cuidar dos outros”, explica Remer.
Remer fala também da importância do luto de quem faz este tipo de trabalho. Para ele, se os cuidadores aprenderem práticas para se tornarem mais resilientes, então, na verdade, o atendimento a pessoas que estão morrendo ou que vivem com doenças crônicas fica melhor.
“Não é saudável deixar que o luto não seja processado. Não é saudável para os cuidadores, pacientes ou a sociedade em geral. Ser humano significa que vamos lamentar uma grande variedade de perdas que experimentamos ao longo da vida. Muitos de nós reprimem a dor. Mais cedo ou mais tarde, a repressão do luto se manifesta como problemas de saúde ou comportamentos inábeis. Todos nós precisamos ser melhores em apoiar amigos, familiares, colegas e até estranhos para lidar com o sofrimento deles. Esse tipo de apoio é compaixão; é humano”.
“Eu esperei a vida toda por este momento. Por sentir que eu pertenço a algo como estou sentindo agora”, desabafa uma das participantes. Ela explica que até mesmo no meio médico e acadêmico falar de morte e cuidados paliativos não é fácil. Com frequência se sente sozinha na jornada de ajudar quem está partindo.
Nota-se que a conexão entre os presentes fica um pouco mais forte depois que ela fala. Alguns se emocionam. Um claro sinal do peso que a morte tem até para a quem a vê de perto com frequência e, de certa forma, a aceita mais que outros.
Remer explica: “Cuidadores têm poucas oportunidades de compartilhar suas experiências e isso é crítico”.
Mas chama atenção a total disposição e – por que não?- alegria com que estas pessoas falam de suas ocupações. Ninguém fala apenas em sofrimento, todos relatam a satisfação por ser presente para alguém que precisa.
“Sou apaixonada pelo que faço”, resume uma. “Me sinto bem de poder estar ao lado do leito de uma pessoa que precisa”, acrescenta outra.
Para estas pessoas, lidar com a morte é essencialmente aprender também sobre a vida.
*Por se tratar de um evento fechado, as identidades dos participantes foram preservadas.
Fonte: G1.com.br