Volta às aulas aos 90 anos: os idosos brasileiros que decidiram ir à faculdade
Nos dias em que tem aula, o aposentado Elpídio Neto de Oliveira, de 70 anos, coloca a mochila nas costas e caminha por 50 minutos, com botinas surradas pelo tempo, até o campus da Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat), em Alto Araguaia (MT). Ele ingressou na unidade de ensino no inicio de 2016. Atualmente, cursa o quinto semestre de Letras – ao todo, são oito.
O aposentado Carlos Augusto Manço também retomou os estudos na terceira idade. Aos 90 anos, iniciou o curso de Arquitetura e Urbanismo no Centro Universitário Barão de Mauá, em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo.
Ele concluiu o ensino médio na juventude e desde então sonhava em cursar uma universidade. Porém, dificuldades financeiras o impediam de concretizar o sonho.
Aos 67 anos, a agente de Educação Infantil Dulce Araújo conquistou o diploma de Pedagogia. Ela conta que o pai e o marido a impediram de estudar quando era mais nova. Em razão disso, passou grande parte da vida se dedicando à família. Décadas mais tarde, o desejo que tinha desde a infância se realizou: foi aprovada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Elpídio, Carlos e Dulce são retratos de brasileiros que não tiveram a oportunidade de fazer um curso superior na juventude e aproveitaram a terceira idade para estudar.
No Brasil, há 18,9 mil universitários com idades entre 60 e 64 anos. Na faixa etária acima dos 65, o número é de 7,8 mil pessoas. Os dados incluem instituições públicas e privadas. As informações constam no Censo de Educação Superior de 2017, levantamento mais recente. Os dados não especificam a quantidade de idosos que estão fazendo curso superior pela primeira vez.
Para Maria Candida Soares, pesquisadora em envelhecimento humano pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), cursar uma universidade pode trazer benefícios aos idosos, como a atualização de conhecimentos, visão de um novo momento sociocultural e a possibilidade de buscar uma nova carreira.
“Muitos conseguem ter acesso ao tão sonhado diploma universitário apenas na velhice. Mesmo que não seja para o exercício de uma atividade profissional, eles podem buscar uma universidade pelo prazer, mérito e reconhecimento em ter concluído o ensino superior, algo que ainda não está disponível para todos os indivíduos”, diz à BBC News Brasil.
A população idosa do Brasil tem crescido a cada ano. De 2012 a 2017, a quantidade de idosos aumentou em 18% no país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para as próximas décadas, a estimativa é de que o número cresça ainda mais.
Segundo o IBGE, pessoas com 65 anos ou mais corresponderão a 25,5% da população em 2060. Em 2018, tal faixa etária corresponde a 9,2%.
“Nessa perspectiva de aumento da população idosa, o contexto nas universidades deverá ser alterado com o passar dos anos”, diz Maria Candida. Segundo ela, cada vez mais se tornará comum a presença de idosos em cursos superiores.
‘Não queria ser chamado de analfabeto’
Elpídio abandonou a escola em 1964, aos 16 anos. Na época, fazia o quinto ano do ensino fundamental. “Tive que largar os estudos para trabalhar, porque meus pais ficaram doentes e eu precisava ajudar em casa”, relata à BBC News Brasil. Desde então, não parou mais de trabalhar na propriedade rural da família, em Ponte Branca (MT).
Quase cinco décadas depois, o idoso se aposentou e decidiu retomar os estudos. O principal motivo que o levou a voltar às salas de aula, conta, foram comentários que ouviu durante a vida. “Muitas pessoas falavam que eu era analfabeto e isso me deixava encabulado”, declara.
As críticas o motivaram a se matricular no programa Educação de Jovens e Adultos (EJA). “Já estava aposentado e tinha mais tempo para enfrentar os estudos. Antes, a minha vida era só trabalhar na roça.”
Em três anos, concluiu o ensino fundamental e o médio, por meio do EJA. Depois, se inscreveu no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e conseguiu uma vaga no curso de licenciatura em Letras, com habilitação em português e inglês.
Ele comenta que escolheu o curso porque sempre quis ser professor. “Talvez eu não chegue a dar aulas. Mas se puder, vou dar.”
Para se dedicar aos estudos, o idoso se mudou de cidade. Ele deixou a região rural de Ponte Branca e foi para a área urbana de Alto Araguaia, junto com a esposa, com quem vive há 40 anos. “Eu tive que sair da minha cidade para ficar mais próximo da universidade”, justifica. Há três anos, o casal, que não tem filhos, mora em um conjunto habitacional.
Ele possui certa dificuldade para compreender os conteúdos das aulas, mas afirma que sempre se esforça para ter um bom desempenho. “As minhas ideias são curtas e não entendo com facilidade os conteúdos, mas a disciplina vai passando e vou aprendendo.”
A casa do aposentado é distante do campus da universidade. Ele estuda no período noturno, suas aulas começam às 19h. Diariamente, ele sai de casa às 17h30 para fazer a caminhada até a Unemat.
“Aqui onde moro não tem ônibus que leva para a universidade. As únicas opções são ir andando ou pagar táxi ou mototáxi. Quando estou atrasado, chamo um mototáxi, mas não é sempre, porque não tenho dinheiro pra isso”, explica o universitário, que tem a aposentadoria como única fonte de renda.
Mesmo com as dificuldades, o aposentado, que planeja se formar no fim de 2020, não falta a nenhuma aula. “Sei que se eu faltar, vou perder o conteúdo e isso pode me prejudicar. Então, mesmo que chova, dou um jeito de ir. Tenho que me dedicar para terminar o curso, porque quando me formar, pelo menos vou saber que não vou morrer analfabeto”, diz.
Arquitetura aos 90 anos
A dedicação aos estudos também é uma característica de Carlos Augusto. Aos 91 anos, ele concluiu, em dezembro, o segundo semestre de Arquitetura e Urbanismo.
Desde a juventude, o idoso planejava fazer um curso superior. Ele adiou o sonho por mais de meio século. “Devido à situação financeira, não consegui cursar uma universidade antes. Eu tinha que trabalhar e, além disso, teria de sair de Ribeirão Preto, onde sempre morei, para fazer uma faculdade “, comenta.
A escolha pela Arquitetura e Urbanismo foi motivada pela profissão que ele exerceu ao longo da vida. Carlos aprendeu a desenhar na juventude, durante o primeiro emprego, logo após servir ao Exército.
Anos mais tarde, fez curso profissionalizante de projetista em uma escola técnica. Por 35 anos, trabalhou como desenhista profissional no câmpus da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto. No local, ajudou a projetar áreas da instituição de ensino e do Hospital das Clínicas, pertencente à USP.
No começo de 2018, Carlos, agora viúvo, pai de dois filhos, com oito netos e quatro bisnetos, decidiu retomar o sonho da juventude. Ele confessa ter ficado em dúvida sobre a área em que iria estudar. “Eu criava orquídeas, então, pensei em fazer Biologia. Mas como a minha profissão da vida foi desenhista, optei pelo ramo da Arquitetura.”
A família do aposentado ficou receosa, a princípio, com o fato de ele iniciar um curso superior aos 90 anos. “Nossa maior preocupação era em relação ao aprendizado dele com os jovens, pois a educação era diferente há 70 ou 80 anos”, diz a confeiteira Isabela Bucci, uma das netas de Carlos.
O idoso foi aprovado no vestibular. Em razão da idade, a universidade concedeu bolsa de 50% a ele. Carlos paga cerca de R$ 800 por mês, com recursos da aposentadoria.
Os parentes se revezam no transporte do idoso, que estuda no período noturno, à universidade. Assim como Elpídio, ele também não gosta de faltar às aulas.
Entre os colegas de turma, ficou conhecido pelo apelido de Juventude. Carlos conta que tem boa relação com os jovens da turma e os auxilia com o conhecimento que adquiriu ao longo da carreira de projetista. Eles também o ajudam. “Eu sei fazer quase tudo. Mas muitas vezes esqueço algo e recorro à molecada da sala”, comenta, aos risos.
A rotina pacata de outrora deu lugar ao cotidiano atribulado. O idoso, porém, não reclama. “Acabou a ‘forga’ que eu tinha antes da universidade”, diverte-se.
Para Carlos, a maior dificuldade tem sido rever conteúdos que havia aprendido na carreira. “Estou aprendendo de outra maneira sobre assuntos que já conhecia”, explica. Depois de formado, ele não planeja voltar a trabalhar, em razão da idade. Ele afirma que o principal objetivo ao entrar na universidade foi realizar o sonho de ter um curso superior.
Planos adiados, mas nunca esquecidos
O sonho de fazer um curso superior também acompanha Dulce Araújo desde a juventude. Na infância, ela conta que costumava passar com o pai em frente ao prédio da UERJ, nas proximidades do Maracanã, e ficava encantada. “Aquela universidade era o meu sonho. Eu tinha paixão quando passava em frente àquele prédio cinza”, diz à BBC News Brasil.
Ela concluiu o ensino fundamental, mas relata que foi impedida pelo pai e pelo então namorado de seguir para o ensino médio. “Parei de estudar quando comecei a me relacionar com o meu marido. Ele não queria que eu continuasse na escola. O meu pai era militar e concordava com ele”, lamenta. Ela se casou, teve dois filhos e tornou-se dona de casa.
Em 2004, aos 54 anos, Dulce começou a fazer diferentes cursos profissionalizantes, como um de informática. Em uma das aulas, um professor a incentivou a fazer o ensino médio. “Ele disse: ‘volta, o cérebro da gente é uma caixinha de surpresas. Se você retornar, as coisas vão voltando aos pouquinhos'”, relembra.
As palavras do docente a incentivaram a procurar o programa Educação de Jovens e Adultos. Em pouco menos de dois anos, ela concluiu o ensino médio.
“O meu marido nunca reclamou do fato de eu ter voltado a estudar. Creio que ele não se incomodava”, comenta. Os filhos – atualmente com 40 e 43 anos -, segundo ela, sempre a incentivaram a voltar à escola.
Pouco antes de retomar os estudos, Dulce havia começado a trabalhar em uma loja, após o marido ficar desempregado. Era o primeiro serviço dela em toda a vida. Logo após concluir o ensino médio, passou a trabalhar integralmente como auxiliar em uma creche.
No período, ela e o marido chegaram a se separar. “Até hoje não sei o motivo da separação. Ele apenas me disse que não queria mais. Não acho que tenha a ver com o fato de eu ter começado a trabalhar e estudar, porque ele não comentava nada sobre isso.”
Por volta de 2007, ela prestou concurso público para agente de Educação Infantil, na capital do Rio de Janeiro, e foi aprovada. Cinco anos depois, aos 62 anos, passou a exercer a função em uma creche da cidade. “A idade nunca me impediu de nada. Não gosto de ficar parada e precisava trabalhar. O concurso foi muito importante para mim.”
Em 2012, ela fez um curso pré-vestibular para se preparar para disputar uma vaga na UERJ. No mesmo ano, fez a prova e passou para Pedagogia. “Quando soube da aprovação, foi uma emoção muito grande”, relembra. Em 2013, ela iniciou o curso superior.
“No começo, eu tinha um pouco de vergonha. Mas depois percebi que eu tinha o mesmo direito de estar ali que os mais jovens”, diz.
Dulce conta que a universidade foi um período importante em sua vida. “Eu aprendi muita coisa boa. Havia várias faixas etárias na turma. Eu era a mais velha, mas isso não me afetava. Nunca tive nenhuma crítica por estar ali.”
Ela se recorda que um dos dias mais emocionantes foi a primeira vez em que entrou no prédio da UERJ, nas proximidades do Maracanã. Para ela, foi uma forma de realizar o sonho de infância. “Foi muito gratificante estar ali como estudante”, diz, com a voz embargada.
A idosa teve de conciliar a função de servidora pública com a vida universitária. Dulce trabalhava no período vespertino e estudava à noite. “Era complicado, mas dava certo. Muitas vezes, eu chegava atrasada, mas geralmente os professores compreendiam. Eu ia do serviço direto para a universidade”, conta.
A rotina de estudos, segundo ela, era intensa. “Eu me dedicava muito. Havia dias em que chegava em casa à noite e ficava até de madrugada estudando as apostilas.”
Em julho do ano passado, o marido dela morreu. Eles haviam retomado o casamento, quando ele ficou doente. Ela passou a cuidar do homem nos últimos meses de vida dele.
“Quando ele faleceu, eu tinha que entregar a minha monografia, mas não estava conseguindo. Os professores, então, entenderam a minha situação e estenderam o prazo”, comenta. Em setembro, ela apresentou a monografia. “Fui aprovada com nove. Fiquei muito feliz”, diz.
Em outubro de 2017, ela se formou. “Nunca reprovei em nenhuma disciplina. Era para ter concluído o curso antes, mas as paralisações atrasaram o cronograma”, pontua. A cerimônia de colação de grau foi um dos momentos mais emocionantes para a idosa.
“Foi uma sensação muito boa. Chorei muito. A minha neta, de um ano, ficava me chamando quando eu estava no palco. Eu chorando e ela me chamando. Ainda me emociono quando lembro”, relata.
Hoje com 68 anos, Dulce continua trabalhando como agente de Educação Infantil em uma creche e pensa em se tornar professora do ensino fundamental. “Até os 70 anos, posso fazer concursos. Se surgir a oportunidade, farei, sim”, comenta.
Ela afirma que não pensa em se aposentar. “Não gosto de ficar em casa, parada. Gosto do meu trabalho e de estar sempre fazendo atividades, como ir ao cinema ou sair com amigos”, diz. Em 2019, ela planeja fazer pós-graduação.
Aprendizado
Estudiosa sobre a velhice, Maria Candida explica que a presença de alunos idosos é também uma forma de aprendizado para os mais jovens. “Eles trazem benefícios a toda a comunidade acadêmica. A vivência com os idosos desmistifica tabus e concepções equivocadas. Esse é um ganho fantástico para os jovens, que terão outro olhar e uma concepção diferente sobre o envelhecimento humano e o indivíduo idoso.”
“Há uma demanda reprimida de idosos que gostariam de cursar graduação ou pós-graduação somente pelo prazer do estudo e da aquisição de novos conhecimentos. Mas ainda estamos condicionados a receber alunos que irão se formar para ingressar no mercado de trabalho, como força produtiva. Muitas vezes, é difícil compreender o estudo pelo prazer de apenas estudar”, acrescenta.
Para Dulce, os idosos não devem ter medo de ingressar em uma universidade. “Eu tinha esse temor, mas hoje vejo que não devemos pensar que a idade nos impede. Estudar é uma forma de nos sentirmos atualizados e úteis. Além disso, você melhora sua saúde física e mental.”
Elpídio reforça que é possível iniciar um curso superior em qualquer fase da vida. “Nunca é tarde. Sempre dá tempo”, diz.
Fonte: G1.com.br