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Diário de um câncer – Eu vi a cara da morte e ela estava viva (mas estou mais viva que ela)

Redação22 de março de 202416min0
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Por Valéria Dias, jornalista e subeditora de Ciências do “Jornal da USP”. Em dezembro de 2023 foi diagnosticada com câncer ginecológico
Uma intuição extremamente intensa soprou forte no meu ouvido: “Isso aí é um câncer”, quando vi aquela secreção estranha no fundo da minha calcinha. Eu estava diante de uma espécie de “massinha”, o equivalente a uma colher de chá, de cor acastanhado claro, com odor de “produto químico” – parecia tinta, solvente, era estranho, o cheiro mais esquisito que já senti na vida. Hoje entendo que, sem saber, naquele 20 de outubro de 2023 eu senti foi o cheiro da morte arrebentando minhas entranhas.

Apesar de, num primeiro momento, a intuição ter sido muito forte, um outro lado meu dizia que eu estava exagerando, aquilo não era nada e, se fosse, era algo ligado à minha idade: estava com 50 anos, continuava menstruando regularmente, mas, a qualquer momento, passaria pelas alterações hormonais associadas ao climatério. A massinha estranha deveria ser isso.

Aquele foi o único dia em que a massinha apareceu. Nos dias seguintes, surgiu um leve corrimento vaginal aquoso, sem cheiro, estranhíssimo, que durou vários dias. Apesar de, nessa época, eu já ter começado a pesquisar sobre câncer de colo de útero, continuei pensando ser uma questão hormonal e achei que, ao menstruar no início do mês seguinte, isso pararia. Não parou: no começo de novembro a menstruação veio, foi embora, e o corrimento aquoso continuou.

Foi nesse momento que decidi ir ao ginecologista. Pelo convênio, só teria consulta para dali a 30 dias, início de dezembro. Porém, eu precisava de um atendimento mais rápido e agendei horário para a semana seguinte em um consultório privado.

Durante o exame ginecológico, a médica disse que havia uma massa visível no colo do útero que sangrava muito com o toque e ela não conseguiu coletar material para o exame preventivo (Papanicolau). Saí de lá com uma indicação de colposcopia com sugestão de biópsia, além de uma série de outros exames (preventivo, ultrassom, mamas, etc.).

A colposcopia é um exame que analisa a vulva, a vagina e o colo do útero por meio de um instrumento que fotografa e amplia essas estruturas. Alguns laboratórios disponibilizam uma tela e a paciente consegue acompanhar as imagens durante o procedimento. Era o caso do lugar onde agendei o exame. E foi assim que, no dia 20 de novembro de 2023, eu vi a “cara da morte”.

Eu olhei para a tela e tive dificuldade de visualizar o colo, uma estrutura entre a vagina e o útero. Já tinha feito colposcopia antes: aquilo não era normal. Quando olhei, vi apenas um amontoado de células disformes, uma massa tumoral que “estourou” o colo do meu útero. Parece até que eu ouvi a abusada da massa tumoral dizer: “Oi Valéria! Eu sou um câncer e estou aqui, invadindo o seu corpo!”.

A médica coletou material para biópsia e não fez nenhum comentário durante o procedimento. O laudo somente sairia depois de alguns dias, mas, mesmo assim, eu tinha certeza que aquilo era um câncer. Minha primeira reação foi a de desespero profundo. Me segurei para não chorar durante o exame.

Voltei para casa arrasada. Deitei na cama e pensava: “Eu quero morrer velha, com 100 anos, e não agora, aos 50”, enquanto chorava copiosamente. Na minha vergonhosa ignorância, achei que fosse morrer na semana seguinte.

“Vou morrer antes de ver o Paul McCartney em dezembro!”

O problema não era a minha certeza sobre o câncer (mesmo sem o diagnóstico), mas sim a minha total e mais absoluta ignorância sobre a doença. Achei que morreria nos dias seguintes e que não conseguiria ir sequer ao show do Paul McCartney, no mês seguinte, em 16 de dezembro.

Trabalho há quase 24 anos como jornalista de Ciências na USP, escrevi várias matérias sobre câncer. Eu tinha um certo conhecimento. Mas diante da possibilidade de ser diagnosticada com a doença, meu pensamento era o da mais completa ignorância. Essa fase durou alguns dias.

Depois entrei na fase de mergulhar profundamente em leituras de pesquisas científicas sobre o câncer de colo de útero, além de material técnico da área da saúde. E aí tive a certeza da perfeição da frase “informação é poder”. Na verdade, informação de qualidade é o grande poder.

Câncer não é uma sentença de morte. Eu não precisava sentir culpa por não ter feito o preventivo no ano anterior, nem por nunca ter me vacinado contra o HPV, vírus responsável por mais de 90% dos casos de câncer de colo de útero. Descobri também que há cânceres ginecológicos que surgem independente da realização anual do preventivo e que há outros, bem mais raros, que não estão associados a esse vírus. E se eu, de fato, estivesse com câncer, haveria um tratamento que destruiria o tumor. Eram apenas as “vozes da minha cabeça” que sentenciaram a morte para dali uns dias: vozes tolas que não mereciam ouvidos. Sem contar que o laudo sequer havia saído.

Nesse período, uma das coisas mais importantes que eu li sobre câncer – e que foi decisivo para eu ter um novo posicionamento sobre a doença – foi um depoimento da apresentadora Ana Maria Braga. O tratamento para o câncer de pulmão que ela teve em 2020 tinha de 10% a 20% de chance de dar certo. E o que ela fez? Se apegou a esses 10% a 20%. Hoje ela está viva, sem câncer.

Quando o laudo da colposcopia e dos outros exames ficaram prontos, eu levei para a médica, na consulta de retorno em 1º de dezembro. Ela indicou que eu procurasse um serviço especializado, mas não chegou a me dizer que eu estava com câncer (o laudo apontava para uma suspeita). Nesse dia, ao chegar para trabalhar na USP, eu contei o que estava acontecendo para uma colega de trabalho. Ela sugeriu que eu marcasse uma consulta com um ginecologista no Hospital Universitário da USP (HU), apesar de não ser um serviço especializado em oncologia. Minha intuição soprou e eu obedeci: escrevi na solicitação de consulta o resultado do laudo, isso poderia agilizar o atendimento. Na segunda-feira, 4 de dezembro, recebi um e-mail deles dizendo que a minha consulta seria na próxima quarta, dia 6.

Levei todos os exames para a médica do HU, especialista em HPV. Ela fez um novo exame ginecológico, além de coletar um novo material para biópsia, que foi encaminhado imediatamente para análise no hospital. Meu retorno seria dois dias depois: 8 de dezembro de 2023, uma sexta-feira. Foi nesse dia que, menos de dois meses depois do primeiro sintoma, eu recebi o diagnóstico: carcinoma de colo de útero (meses depois, em fevereiro, ele passou a ser tratado como sarcoma do estroma endometrial, após outras biópsias e análises imuno-histoquímicas do tumor, exames que determinam o tipo exato de câncer e, consequentemente, o melhor tratamento para o caso).

O dia mais triste da minha vida

O dia 8 de dezembro de 2023 foi o dia mais triste da minha vida. Confesso que eu tinha uma pequena esperança de que aquela massa de células disforme de aparência repugnante fosse apenas uma lesãozinha ou uma infecçãozinha que fugiu do controle e que poderia ser tratada com uma pomadinha ou uma cauterizaçãozinha. Foi muito dificil admitir que eu estava com câncer. Mas não me restava outra alternativa a não ser aceitar o diagnóstico, por mais difícil que fosse.

Meu caso foi encaminhado à Central de Regulação de Oferta de Serviços de Saúde (Cross) da Secretaria de Estado da Saúde, que gerencia as vagas para atendimento no Estado. Em algumas semanas, fui encaminhada ao Instituto do Câncer (Icesp) de São Paulo.

Liguei para minha chefe, disse que estava voltando para a redação do jornal e que queria uma reunião urgente com ela e com a nossa diretora. Contei toda a história, dos primeiros sintomas ao diagnóstico. Fui extremamente bem acolhida. Trabalho com pessoas maravilhosas que me deram todo apoio no momento mais difícil da minha vida.

Alguns dias depois, em 11 de dezembro, vi o post da cantora Preta Gil no Instagram falando que o tratamento para o câncer de reto que ela fez ao longo daquele ano estava finalizado. Assim como ler o depoimento da Ana Maria Braga, ouvir o relato da Preta também me encheu de esperança. Eu tenho certeza que, no futuro, também darei um depoimento semelhante.

Preciso ressaltar aqui a importância de ter confiado na minha intuição, desde o primeiro sintoma até a insistência em marcar logo um médico. Também preciso destacar sobre a necessidade de nós, mulheres, prestarmos atenção ao nosso corpo, nossas secreções, nossos ciclos e a todos os sinais que as doenças trazem e não medir esforços para ir atrás de soluções. Eu sei muito bem como meu corpo funciona e logo vi que havia algo errado. Se achasse que a secreção era um corrimento comum, eu demoraria muito tempo para buscar ajuda. E isso poderia interferir diretamente no meu tratamento e na minha cura.

Também contei com a rapidez de exames e acesso médico, principalmente quando temos que lidar com o SUS. Minha consulta no HU foi rápida e certeira, mas penso em todas as pessoas que estão aguardando há meses uma consulta nos serviços públicos espalhados pelo Brasil. Como isso impacta o tratamento do câncer e de outras doenças?

Acredito ser importante compartilhar relatos semelhantes, principalmente no meu caso, pois encontrei poucas mulheres falando sobre câncer ginecológico. Por isso, tive a ideia de compartilhar aqui, no Jornal da USP, minha jornada pelo mundo dos pacientes oncológicos, do qual hoje eu faço parte. Quero agradecer a toda a equipe do jornal e à Superintendência de Comunicação Social (SCS) pela oportunidade.

Ah, e antes que me esqueça: em 16 de dezembro de 2023 eu estava absurdamente viva para ver o show do Paul McCartney na pista do Allianz Park. Que show fantástico! E sim, chorei copiosamente em Let It Be. Pois sou devota de Nossa Senhora, então, a Mother Mary da música, para mim, é sim a mãe de Jesus (e não a mãe do Paul). E tem mais: eu estava tão viva, tão cheia de vida, e gostei tanto da apresentação do sábado, que comprei ingressos para o dia seguinte, domingo, mas desta vez assisti ao Sir Paul das cadeiras (bem mais confortável). Azar do carcinoma, ele que lute diante de tanta ânsia pela vida!

Valéria Dias, no show do cantor Paul McCartney, em 16 de dezembro – Foto: Arquivo pessoal

 

Com certeza um dia irei morrer, seja de câncer ou de qualquer outra coisa. Não faço a menor ideia como e quando isso vai acontecer. Mas podem ter certeza que no dia em que a morte chegar perto de mim, eu vou olhar para ela e ela vai me encontrar muito, muito, muito viva: minha existência vai “provar que existe vida antes da morte”. E eu irei embora, a contragosto, mas tenham certeza que terei vivido uma vida plena. Isso é o que importa.

Fonte: Jornal da USP

Redação


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