Como fatores emocionais impactam a saúde gastrointestinal
Na véspera de um evento importante, ela vem sem avisar. Talvez seja uma prova, talvez uma apresentação. Pode ser um compromisso escolar, de trabalho ou mesmo uma cerimônia para a qual há muito nos preparamos. E, de repente, aquela impertinente dor de barriga parece prestes a colocar tudo a perder. O problema pode surgir ainda sob outras formas, tornando desconfortável um evento que era para ser relaxante. Caso, por exemplo, daquelas sonhadas férias que acabam ameaçadas quando, no meio de uma viagem, sofremos com a dificuldade de fazer o número dois fora de casa.
Estas são apenas algumas das situações que, familiares, em alguma medida, à maioria das pessoas, demonstram como o nosso estado emocional pode influenciar e exacerbar sintomas gastrointestinais. Um fenômeno desencadeado por uma série de explicações neurofisiológicas, como aponta a gastroenterologista Ana Flávia Passos Ramos, preceptora na enfermaria de gastroenterologia, hepatologia e transplante hepático da Santa Casa BH.
“Sabemos que o trato gastrointestinal é extremamente enervado e, hoje, temos mais conhecimento sobre o chamado eixo cérebro-intestino, que permite que os dois órgãos troquem mensagens o tempo todo. É através dessa comunicação que conseguimos realizar diversas funções, como a motilidade intestinal (capacidade que certos órgãos apresentam de realizar movimentos autônomos) e a liberação de hormônios e enzimas digestivas”, detalha. “Portanto, tudo o que afeta nosso estado emocional pode levar à liberação de neurotransmissores, que vão influenciar essa comunicação do eixo cérebro-intestino, contribuindo para o aparecimento de sintomas”, complementa.
Mas a especialista pondera que o humor e o estado emocional não são causa, por si, dos transtornos gástricos ou intestinais. Os problemas, na verdade, resultam de uma equação complexa, que inclui uma série de fatores, desde aspectos genéticos até aqueles ligados ao estilo de vida moderno, marcado não só pelo estresse e ansiedade, mas também por hábitos alimentares irregulares, incluindo práticas como longos períodos sem se alimentar, consumo excessivo de café, alimentos processados, e o tabagismo.
Mas Ana Flávia reconhece que aspectos emocionais podem, sim, exacerbar sintomas de transtornos já existentes, ou serem gatilhos que favorecem a manifestação desses transtornos por meio da exacerbação de seus sintomas.
Ela pontua serem múltiplos os sinais de distúrbio que podem emergir por conta de períodos mais estressantes ou ansiosos, como a dor, o desconforto e a distensão abdominal, a acentuação de sintomas relacionados à doença do refluxo gastroesofágico e a alteração do hábito intestinal, seja na forma da constipação ou da diarreia. Eventos que, prossegue a especialista, são mais comuns no caso dos distúrbios da interação do eixo cérebro-intestino, anteriormente conhecida como doença gastrointestinal funcional.
Um sistema complexo
Para a médica psiquiatra Cíntia Braga, estudiosa dos usos terapêuticos da cannabis, as emoções afetam potencialmente o funcionamento do corpo como um todo – e com o sistema digestivo não seria diferente. “O corpo não se divide entre físico e mental, é um sistema complexo em que um aspecto influencia diretamente outro. Muitas vezes, o sintoma físico se manifesta antes de algum sintoma psicopatológico ou pode ser amplificado pela ocorrência de algum tipo de sofrimento mental”, assegura.
A psiquiatra prossegue assegurando que a medicina moderna entende que o papel do sistema gastrointestinal não está restrito à absorção de nutrientes, impactando também a manutenção da saúde e do bem-estar em geral. “O eixo intestino-cérebro tem ganhado destaque em estudos recentes, que demonstram existir uma complexa relação entre o sistema nervoso entérico (presente ao longo do sistema digestivo) e o sistema nervoso central”, menciona.
Ela ainda diz que diversos transtornos podem ser influenciados justamente por processos disfuncionais nesse eixo. “Mas isso não é novidade, na Medicina Tradicional Chinesa e na Ayurveda, o sistema digestivo tem papel fundamental na homeostase (a capacidade dos organismos de manterem seu meio interno em certa estabilidade)”, aponta.
Veja problemas gastrointestinais afetados por questões emocionais
Cíntia Braga cita que aspectos emocionais podem impactar alterações na motilidade intestinal, seja na forma da diarreia, da constipação ou de uma combinação de ambos problemas. Ela também cita a acentuação de episódios de refluxo gastroesofágico, piorando sintomas como queimação, dor e desconforto abdominal.
“O estresse é um fator conhecido que pode agravar a Síndrome do Intestino Irritável, caracterizada por dor abdominal, inchaço e alterações nos hábitos intestinais”, complementa, indicando, por fim, que fatores emocionais podem causar alterações no apetite, levando a comer em excesso ou comer muito pouco, mudanças que podem afetar a digestão e a absorção de nutrientes.
Estratégias para amenizar sintomas
Entre as estratégias que podemos adotar para minimizar sintomas do trato gastrointestinal em vigência de períodos de maior ansiedade e estresse, a maioria está ligada ao estilo de vida. “Em relação ao comportamento alimentar, por exemplo, podemos fracionar a dieta, optando por comer em pequenas porções e maior frequência, priorizando alimentos saudável e ricos em detrimento aos ultraprocessados e àqueles com gordura em excesso”, recomenda Ana Flávia Passos Ramos.
A gastroenterologista ainda reforça que a pedra angular de qualquer tratamento médico é o bom relacionamento entre o profissional da saúde e o paciente. “É fundamental que o médico tenha uma escuta empática, que entenda quais são as preocupações do paciente, que se certifique que a pessoa atendida compreendeu as questões colocadas na consulta e que fiquem claras e alinhadas as expectativas com o tratamento”, assinala.
Fonte: O Tempo