Minas registra 172 mortes por intoxicação medicamentosa em menos de dois anos
A morte do cantor e compositor Lô Borges, no último domingo (2/11), em decorrência de falência múltipla de órgãos, após ser internado com um quadro de intoxicação medicamentosa, acende o alerta para um grave problema de saúde pública que é silencioso e frequente. Dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) mostram que, em Minas, 172 pessoas morreram entre 2024 e 20 de outubro de 2025 após intoxicação por uso acidental, intencional ou por exposição a medicamentos — foram 57 neste ano e 115 no ano passado. Para especialistas, o uso de remédios sem orientação médica, o descarte irregular e a associação de fármacos a outras substâncias estão entre as principais causas do problema, que pode provocar sérias complicações e até levar à morte.
O artista mineiro, um dos criadores do Clube da Esquina, estava internado em um hospital da Unimed em Belo Horizonte desde o dia 17 de outubro. Ele chegou a ser intubado e, posteriormente, foi submetido a uma traqueostomia, mas não resistiu e faleceu às 20h50 de domingo. O problema que atingiu um dos principais nomes da música brasileira é mais comum do que se imagina e pode ser provocado até pelo uso incorreto de remédios de venda livre, que fazem parte do cotidiano de muita gente, como analgésicos.
“As pessoas, às vezes, usam medicamentos comuns, como analgésicos e anti-inflamatórios, achando que são inofensivos; mas eles em doses erradas ou associados a outras substâncias podem causar reações alérgicas graves, gastrite e até insuficiência renal”, afirma a cientista e pesquisadora Maria de Fátima Leite, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Hepatologia 360º (INCT Hepatologia 360º), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Segundo ela, a interação medicamentosa entre diferentes medicamentos e a interação entre fármacos e outras substâncias, como bebidas alcoólicas, fitoterápicos e chás, podem parecer inofensivas, mas também representam grande risco.
“Poucas pessoas conhecem o risco, por exemplo, de tomar medicamentos junto com fitoterápicos e chás, que muita gente considera naturais, mas que podem ter alta toxicidade ao interagir com outros remédios. Então, algo que parece inofensivo, de repente, vira um problema grave. Temos também o uso incorreto de antibióticos, que é muito comum”, alerta.
A pesquisadora da UFMG destaca ainda que equívocos comuns, como tomar o mesmo medicamento com nomes comerciais diferentes, sem perceber que possuem a mesma substância, ou usar remédios com componentes semelhantes, podem causar superdosagem e efeitos tóxicos. Um erro desse tipo quase trouxe consequências sérias para a filha da auxiliar de serviços gerais Stephanie Souza, de 49 anos. Ela conta que recomendou que a menina, de 15 anos, tomasse um analgésico após se queixar de dores no corpo, mas, por engano, a adolescente acabou ingerindo um fármaco que tinha entre seus componentes o paracetamol. “Ela leu na caixa “paracetamol” e tomou. Depois descobri que, na verdade, era um remédio do pai dela, usado no tratamento de reumatismo, que também continha paracetamol. Foi um susto. Levamos ela ao médico, ela foi atendida e, felizmente, não teve efeitos colaterais”, relata.
O que para ela terminou apenas em um susto, em outros casos pode ter desfechos graves, com evolução do quadro do paciente para problemas no fígado, que podem levar à morte. “Embora a intoxicação medicamentosa não seja necessariamente uma doença hepática primária, ela pode desencadear ou agravar danos ao fígado e aos demais órgãos, acelerando o que chamamos de comprometimento sistêmico. O fígado, como órgão central do metabolismo de fármacos, está entre os primeiros a sofrer com falhas no processamento de substâncias em excesso ou mal indicadas. Sistemas de hemodiálise, traqueostomia e ventilação mecânica, como os que o artista teve, são sinais de comprometimento grave e tardio”, pontua Maria de Fátima Leite.
A pesquisadora alerta que qualquer pessoa pode estar suscetível à intoxicação e lista alguns cuidados básicos para evitar o envenenamento acidental. “Nunca se deve tirar o medicamento da embalagem original nem jogar fora no lixo comum, na pia ou no vaso sanitário. O ideal é levar o produto vencido ou sem uso para as farmácias, que têm pontos de coleta adequados. Não se deve induzir o vômito ou tomar líquidos. Cada caso é diferente, por isso o atendimento deve ser feito por um profissional, com informação sobre quais medicamentos foram ingeridos”, ressalta.
Segundo Maria de Fátima Leite, a regra é sempre buscar orientação do farmacêutico ao comprar qualquer medicamento. “No ato da compra, você pode e deve conversar com o profissional de saúde (farmacêutico), que é qualificado para dar esse tipo de informação. Uma pessoa que já está, por exemplo, em tratamento para hipertensão e tem uma dor de cabeça deve consultar o farmacêutico, que poderá avaliar se a interação medicamentosa com o analgésico é segura. A automedicação pode parecer simples, mas é um hábito perigoso que pode ter consequências irreversíveis”, finaliza.
Em nota, a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG) disse que as ações voltadas à prevenção, monitoramento ou controle de ocorrências de intoxicação medicamentosa são realizadas pelos municípios, em seus territórios. Já a Prefeitura de Belo Horizonte informou que, em casos de urgência e emergência por intoxicação medicamentosa atendidos nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) do município, é feita uma discussão com o Centro de Informação e Assistência Toxicológica de Minas Gerais (CIATox-MG), do Hospital João XXIII. Essa parceria possibilita orientação técnica especializada para a condução e manejo clínico dos pacientes.
Sobre o descarte de remédios, a prefeitura disse que os centros de saúde do município recebem, da população, medicamentos vencidos, além daqueles que o paciente não tem mais indicação médica para utilizar. Todo o material recolhido é enviado para incineração. Já os medicamentos vencidos ou em desuso gerados internamente nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) são recolhidos e descartados por uma empresa terceirizada, seguindo as diretrizes estabelecidas no Plano de Gerenciamento de Resíduos de Serviços de Saúde (PGRSS).
Fonte: O Tempo







